Em “ensaio” para reforma do IR, governo mira offshores para corrigir “distorções”

Foto Daniel Loria

Considerada um “prelúdio” para o debate sobre a reforma do Imposto de Renda, a medida provisória que modifica a tributação sobre aplicações financeiras no exterior (MPV 1171/2023) coloca o Brasil na mesma página que as principais economias do mundo, corrige distorções injustificadas que produzem incentivos fiscais a segmentos de maior renda da população e pode estimular a repatriação de recursos para o país.

É o que diz o advogado Daniel Loria, diretor de programa da Secretaria Extraordinária de Reforma Tributária do Ministério da Fazenda, e um dos responsáveis pela construção do texto editado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 1º de maio. A MPV está em tramitação no Congresso Nacional e a maior parte dos seus efeitos só será produzida em 2024, caso o parlamento aprove a matéria.

Em entrevista concedida ao InfoMoney no escritório da pasta em São Paulo, Loria lembrou que a percepção de que o atual sistema tributário gera incentivos para que investidores com maior poder aquisitivo apliquem recursos fora do país com vantagens do diferimento de imposto não é novidade. Presidentes de correntes ideológicas antagônicas, Dilma Rousseff (PT) e Jair Bolsonaro (PL) encaminharam propostas para tentar mudar o sistema durante suas gestões, mas não lograram êxito.

“O diagnóstico do problema estava escancarado na nossa frente. Era uma fratura exposta no sistema do Imposto de Renda no Brasil. Tanto que muita gente apoiou a MPV. Gente que vai ser afetada considerou que é justa, advogados também. Era um problema evidente. Essa é uma daquelas situações em que estamos dando um benefício tributário para a pessoa física de altíssima renda investir fora do Brasil. Não faz sentido”, disse.

O técnico pontuou, no entanto, que desta vez a estratégia do Poder Executivo foi destacar o assunto para uma discussão separada e com menor risco de contaminação por outros itens da pauta tributária – o que pode facilitar as tratativas com setores da sociedade e a organização do debate entre os parlamentares. Loria, contudo, prefere não fazer qualquer aposta sobre a tramitação do texto no Congresso Nacional, que ainda não teve comissão mista instalada e relator designado mas recebeu 104 emendas.

Segundo ele, a ideia foi apresentar um texto focalizado nos investimentos de pessoas físicas diretas e offshores, que trouxesse maior progressividade e conferisse segurança jurídica ao modelo. A MPV é um primeiro passo para a discussão da reforma tributária sobre a renda, que deverá ser encaminhada pelo governo ao Legislativo uma vez superado o debate sobre as PECs que tratam dos impostos sobre o consumo.

“Antes não havia uma regra específica na lei tributária [para aplicações financeiras mantidas por brasileiros no exterior]. Advogados, contadores e o contribuinte precisavam fazer um ‘puxadinho’, tentando encaixar uma regra que não era feita para aquela situação”, explicou.

“Quando você falava de aplicação financeira offshore, as pessoas pegavam emprestada a mesma regra de ganho de capital na venda de bens imóveis no Brasil e aplicavam para negociação de ação da Apple em Nova York. Era um ‘puxadinho’, uma interpretação emprestada, a Receita Federal aceitava, mas a lei que eles usavam não tinha sido feita para essa situação. Por isso que havia uma progressividade que começava em R$ 5 milhões. Não faz o menor sentido. Até para o ganho de capital ela é bastante generosa. Estávamos usando uma lei que não era para isso”, disse.

A MPV 1171/2023 cria uma tabela unificada para a cobrança de imposto sobre rendimentos de aplicações financeiras de pessoas físicas no exterior e os lucros gerados por offshores, com alíquotas que vão de 0% (ganhos anuais até R$ 6 mil) a 22,5% (ganhos anuais que superarem R$ 50 mil). Desta forma, ela busca afastar dúvidas sobre a tabela de referência usada por cada modalidade – se a progressiva de IRPF (que vai de 0% a 27,5%) ou a de ganhos de capital (que vai de 15% a 22,5%).

No caso de investimentos diretos, o texto mantém o chamado regime de caixa (em que o imposto é recolhido apenas no momento do resgate, amortização, alienação, vencimento ou liquidação das aplicações), mas a declaração passa a ser anual.

As offshores são o ponto central da proposta, tanto do ponto de vista regulatório quanto como fonte de arrecadação. Para contribuintes que usam essas estruturas, o texto prevê substituição do regime de caixa para o chamado regime de competência (em que os lucros passam a ser tributados anualmente, mesmo se mantidos pela controlada no exterior).

O texto também regulamenta os “trusts”, que são uma ferramenta contratual sofisticada muito usada no exterior para a organização do patrimônio e da sucessão por famílias de alta renda. Pelo dispositivo, eles passam a ser considerados entidades transparentes, com necessidade de declaração pelos titulares.

A matéria ainda traz a opção para o contribuinte atualizar o valor dos seus bens e direitos no exterior, tributando a diferença por uma alíquota favorecida de 10%.

Cálculos do Ministério da Fazenda indicam que as mudanças devem trazer um ganho de arrecadação de R$ 13,59 bilhões em três anos. Os recursos são apontados pelo governo como fonte de compensação para a atualização de 10,9% da faixa de isenção do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF), que passou de R$ 1.903,98 para R$ 2.112,00 a partir deste mês e deve impactar negativamente as contas públicas em R$ 15,35 bilhões até o fim de 2025.

“Conseguimos fazer uma medida que desonere o mais pobre [com a atualização da tabela do IRPF], financiando isso a partir de um ativo que não era tributado, a empresa offshore, e que é detido por pessoas de altíssima renda”, explica Loria.

Corrigindo “distorções”

A equipe econômica alega que atualmente há mais de R$ 1 trilhão (ou US$ 200 bilhões) em ativos mantidos por brasileiros no exterior que “não pagam praticamente nada de IRPF sobre rendas passivas” com as regras vigentes, que permitiam o diferimento do imposto (ou seja, a procrastinação de qualquer recolhimento).

Isso ocorre porque no atual sistema o contribuinte pode usar a estrutura de offshores para que a entidade intermediária aufira os rendimentos de ativos, mas represe os rendimentos no exterior, passando anos sem distribuí-los ao sócio pessoa física brasileira.

Na prática, isso implica o diferimento da tributação até o momento da efetiva transferência pela entidade para o sócio pessoa física residente no Brasil, seja em conta corrente em território nacional ou no exterior, ou no uso dos recursos para o pagamento de despesas pessoais do titular. É o chamado “regime de caixa”, que deixaria de existir para os lucros aferidos por offshores a partir de 2024.

“Por definição, quem tem dinheiro fora é gente de um poder aquisitivo mais elevado. A faixa de entrada tem mudado um pouco [nos últimos anos], mas em geral é gente que tem dinheiro sobrando para aplicar fora. Estamos falando provavelmente de 1% ou algo muito próximo”, diz o advogado que participou da construção do texto.

No texto de exposição de motivos da MPV, o governo alega que o atual sistema provoca uma “quebra da neutralidade tributária” e “distorção alocativa”, em prejuízo aos interesses nacionais.

Uma das consequências disso é a redução do potencial arrecadatório do Estado e possíveis impactos sobre a execução de políticas públicas, em prejuízo de camadas economicamente mais vulneráveis da população.

A situação é análoga à que ocorre no caso dos fundos exclusivos, em que o contribuinte passa anos sem recolher nenhum imposto – ao contrário do que ocorre com o chamado “come-cotas” na maioria dos fundos.

“O problema está nas offshores, que custam um bom dinheiro para se manterem (US$ 5 mil por ano, em média). E nessa offshore, [o contribuinte] aplica, faz lucro, pode ficar por anos com ele lá fora, acumula capital a vida inteira para a família, passa para o filho e não paga R$ 1,00 de imposto no Brasil”, afirmou o diretor da Fazenda.

Decisão sobre alíquotas

Na conversa com o InfoMoney, Daniel Loria explicou que a MPV não teve como alvo o público de entrada exposto ao mercado internacional – uma referência a cidadãos que remetem um volume menor de recursos com o objetivo mais relacionado a lazer e turismo do que investimentos.

Uma crítica comum entre investidores e advogados, contudo, é que o texto teria “espremido” as faixas da tabela de imposto, levando a maior parte dos contribuintes, mesmo aqueles sem grandes fortunas no exterior, à alíquota máxima.

Na prática, a alíquota máxima, de 22,5%, que incidia sobre ganhos de capital superiores a R$ 30 milhões anuais, passará a ser aplicada sobre rendimentos acima de R$ 50 mil.

“A pessoa que abriu a conta lá fora para mandar um dinheirinho, fazer um cartão de crédito num banco para gastar em uma viagem, não deveria ser impactada”, disse Loria. Por esse princípio, ele explicou que o governo manteve isenta a variação cambial da conta corrente não remunerada mantida no exterior por pessoas físicas. Da mesma forma, estão livres de impostos ganhos de até R$ 6 mil, que poderiam enquadrar pequenos ganhos por juros em conta.

“A intenção do 0% foi para não impactar pessoas que não eram o público-alvo da MPV. Os 15%, a seu turno, foram para pegar um público de entrada lá fora, com renda de até R$ 50 mil por ano offshore. Se pensamos em R$ 50 mil de renda do capital por ano, estamos falando que a pessoa tem pelo menos R$ 500 mil investidos offshore. Não é gente pequena para Brasil. Quem tem US$ 150 mil para manter fora do Brasil é gente com patrimônio, ainda mais na realidade brasileira. Esses ficaram em 15% [de alíquota]”, pontuou.

“Os 22,5% deixamos reservado para quem tem um retorno do capital maior lá fora. Se ele tem US$ 1 milhão lá fora, ele vai estar no 22,5%. Dentro da realidade do Brasil, achamos que essa calibragem ficou adequada”, afirmou.

Recursos repatriados?

Loria acredita que a medida provisória traz maior isonomia ao tratamento tributário para diferentes formas de aplicações financeiras, sobretudo no comparativo entre investimentos nacionais e internacionais.

Para ele, isso pode gerar um “efeito colateral positivo” de tornar o mercado doméstico mais interessante em relação a alternativas de investimentos fora do país.

Outra consequência esperada com uma maior segurança jurídica sobre offshores é uma “integração” de patrimônio de investidores com aplicações no exterior, de modo a permitir que essas estruturas possam investir com mais facilidade em produtos financeiros brasileiros. O que na prática pode contribuir para a vinda de recursos para o país.

“Com essa MPV, trazemos muito mais transparência para os investimentos. Hoje, se você é uma pessoa física com uma offshore e minha offshore quer investir no Brasil, é superdifícil, porque o banco brasileiro não quer recebê-lo, porque você está em um limbo: não é estrangeiro, mas também não é brasileiro. O beneficiário efetivo está no Brasil, mas o titular direto é estrangeiro. Então, o banco fica receoso”, explicou.

“O que estamos fazendo é dizer que a pessoa pode investir onde quiser, mas tem que pagar imposto como se estivesse investindo no Brasil”, disse.

Segundo o diretor da Fazenda, o governo segue aberto ao diálogo e possíveis aperfeiçoamentos ao texto. “Nós fomos muito mais em uma linha de isonomia, de ter uma regra de tributação similar para investimento fora e investimento local. Usamos a alíquota de 22,5%, porque é a alíquota máxima da renda fixa no Brasil. Sabemos que não atingimos uma isonomia plena, ainda temos algumas diferenças. Essas diferenças estão no nosso radar, estamos avaliando”, disse.

“O pêndulo estava favorecendo o investimento offshore muito, estava muito vantajoso para investir fora em detrimento do mercado brasileiro. Agora o pêndulo foi para o outro lado. Criamos uma regra para a tributação lá fora que buscou uma isonomia, mas talvez ainda realmente tenhamos que estudar essa questão da nova assimetria que foi criada para o outro lado: o Brasil está com uma alíquota menor em algumas situações do que o investimento offshore”, pontuou.

Por se tratar de medida provisória, o texto deve ser discutido em comissão mista no Congresso Nacional e precisa de aprovação pelos plenários das duas casas legislativas em até 120 dias.

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Marcos Mortari

Marcos Mortari