Conheça o pão de Saóra: patrimônio imaterial da Paraíba que atravessa gerações e inspirou música


Espécie de pão francês com massa densa e livre de aditivos químicos foi inventada por Severino Cabral, conhecido por Saóra, e se popularizou em Cajazeiras, no Sertão. Hoje, a receita atravessa gerações e é produzida por uma das netas dele, em João Pessoa. Pão de Saóra é patrimônio imaterial da Paraíba Arquivo pessoal/Jana Cabral Quando Severino Cabral dos Santos, mais conhecido como Saóra, inventou uma massa de pão, por volta de 1947, talvez não imaginasse que a invenção atravessaria gerações. A receita, que é semelhante ao pão francês, mas com uma massa mais densa, ficou famosa na cidade de Cajazeiras, no Sertão do estado, foi conservada pelos filhos e netos de Seu Saóra e se tornou patrimônio imaterial da Paraíba. O criador morreu em 2004, antes de ver sua invenção se tornar patrimônio imaterial, mas as gerações seguintes continuaram conservando e fabricando a receita. Atualmente, uma das netas de Saóra, Jana Cabral, divide-se entre o trabalho como técnica de enfermagem em João Pessoa, de segunda à quinta-feira, e na panificação da tradicional receita familiar, às sextas-feiras. A fabricação é feita na casa dela, no bairro Aeroclube, na capital paraibana, onde mora com o marido, Leonardo de Souza, que ajuda na produção, e com os filhos Benjamin, de 8 anos, e Arthur, de 10 anos. A mulher relata que vende cerca de 20 quilos por semana em João Pessoa, tudo feito por encomenda e entregue por delivery. Após preparação, massa fica descansando antes de ir para o forno Luana Silva/g1 “Tem saído bem, graças a Deus. Tanto os cajazeirenses quanto os pessoenses têm procurado bastante, e em Cajazeiras é alimento pra cidade toda”. Jana aprendeu a receita com o pai, José de Arimatéia Cabral. Ele, por sua vez, aprendeu com o pai, Saóra, e até hoje toca a padaria da família em Cajazeiras, no Sertão da Paraíba, onde esse tipo de pão se tornou famoso. A história do pão une comércio, cultura paraibana e afeto que atravessa não apenas a família, mas a memória de uma cidade. José de Arimatéia Cabral, Severino Cabral Filho, que são filhos de Saóra, e Joab Cabral, filho de Arimatéia e neto de Saóra Arquivo pessoal/Jana Cabral A rotina de Jana Cabral durante as sextas-feiras começa cedo, por volta das 5h da manhã. “Levanto 5h da manhã, aí vou preparar o material da massa, preparar a massa, rechear. Depois de mexer a massa, ela vai descansar. Hoje terminei esse processo umas 10h. Demora de 40 minutos a uma hora para crescer e aí eu faço o corte e vai para o forno”. Jana explica que o processo é feito manualmente e não tem a adição de nenhum tipo de conservante ou outros aditivos químicos. Segundo ela, até o fermento biológico é aplicado em baixíssima quantidade. Jana Cabral aprendeu a receita com o pai, José de Arimatéia que é filho de Saóra Luana Silva/g1 O trabalho como padeira só começou em 2020, durante a pandemia. Apesar de ajudar a família na produção desde criança, Jana se formou em técnica de enfermagem e trabalhava em dois hospitais, até que decidiu sair de um dos empregos para se dedicar a uma paixão antiga. “Desde criança, eu ia ajudar meu pai na padaria, abria os sacos de farinha e eu achava lindo. Sempre tive aquele desejo de trabalhar com isso guardadinho. Aí me profissionalizei, sou técnica de enfermagem, fiz meus concursos, passei. Chegou um tempo em que eu estava trabalhando em dois hospitais, mas já não estava aguentando mais. Aí fiquei só no HU e veio a ideia de fazer o pão aqui”. Um dos principais desafios que Jana enfrentou foi utilizar o forno a gás para assar os pães. É que até hoje o pai dela utiliza forno à lenha na produção. “Lá em Cajazeiras usa o forno a lenha, aqui nós usamos o forno a gás e foi um grande desafio descobrir a temperatura, o tempo ideal. Lá ainda usa a lenha. Se muda a composição da farinha, já muda tudo aqui, até a quantidade de água”. Patrimônio imaterial Jana Cabral com a decisão que tornou pão de Saora patrimônio imaterial da Paraíba Luana Silva/g1 O pão de Saóra foi considerado patrimônio imaterial da Paraíba pela Lei 11.916, sancionada pelo governador da Paraíba, João Azevêdo, no dia 27 de abril de 2021. O projeto é de autoria do deputado estadual Jeová Campos, de 5 de março de 2021. O projeto de lei foi aprovado na Assembleia Legislativa da Paraíba (ALPB), no dia 24 de março de 2021, por unanimidade. Jana Cabral lembra que assistiu à reunião on-line, por causa da pandemia, enquanto preparava os pães para entrega. Na sessão, estiveram presentes os deputados Júnior Araújo e Dra. Paula, que atuam na região do Sertão, assim como o propositor Jeová Campos, e, mesmo sendo de partidos e posicionamentos diferentes, convergiram na decisão. "Foi uma benção. Passou por unanimidade, todo mundo votou. Neste dia da sessão tinha três deputados de Cajazeiras e foi assim super bem aceito”, relembrou. Quem foi Saóra Saóra costumava carregar seus pães em um balaio na cabeça para vender nas ruas da cidade Arquivo pessoal/Jana Cabral Enquanto espera a massa descansar, Jana Cabral conta a história do avô. Severino Cabral, Saóra, nasceu em 1918 na cidade de Teixeira. Após perder o pai, quando tinha apenas 7 anos de idade, a família se mudou para Patos. Foi lá, aos 9 anos, que o futuro inventor começou a trabalhar com panificação. Contudo, foi em Cajazeiras, para onde se mudou em 1947, que Saóra começou a se destacar como padeiro. “Com 9 anos, ele já começou a trabalhar em padarias. Naquela época as crianças trabalhavam, ele nasceu em 1918. Foi trabalhando nas padarias e se desenvolvendo. Aí se casou com a primeira esposa, minha avó, mãe do meu pai e teve 5 filhos. Foi para Cajazeiras em 1947 e começou a produzir lá”, relatou. Ao chegar na cidade, Saóra passou a compartilhar com os padeiros da região dicas sobre panificação. “Ele foi ensinar aos padeiros como fazia a fermentação, a trabalhar a massa. Ele levou todo um conhecimento consigo e disseminou, menos a receita do pão dele, risos”. Um dos filhos de Saóra, Severino Cabral Filho, escreveu o livro "O Pão da Memória", publicado em 2004. Na obra, ele cita uma das falas do pai, que relatava o quanto os produtos de panificação da cidade na época não tinham boa qualidade. "As padarias daqui só sabiam fazer um tipo de pão aguado, fino e duro que só cacete, não tinha cristão de Deus que aguentasse comer. Já o pão doce era que nem chiclete, tinha uma liga medonha, e faziam também umas bolachas redondas que também não eram boas”, contou Saóra. Lei que tornou pão de Saora patrimônio imaterial e livro 'O Pão da Memória' g1/Luana Silva Por isso, pouco tempo depois de chegar em Cajazeiras, segundo Jana Cabral, Saóra conseguiu montar sua pequena padaria na periferia. “Em um mês, ele já conseguiu montar a padaria dele, que chamava de gangorra, as padarias pequenas eram chamadas de gangorra, ali naquela rua que vai lá para o Perpetão, nas Capoeiras”. A padaria da família não funciona neste mesmo local, mas ainda fica nas proximidades. O pai de Jana, José de Arimatéia, gerencia o negócio com ajuda de um dos irmãos e do filho, Joab. Além do pão francês de receita própria, Saóra fabricava as bolinhas de ouro, que são pães doces, com massa semelhante ao brioche, e o jacaré de coco, um pão doce, recheado com coco e em forma de jacaré. Jana Cabral diz que não faz o jacaré de coco, mas o mantém vivo na memória. “Ele fazia jacaré de coco também, mas eu não me atrevi a fazer, porque é uma coisa muito simbólica e deixei em um lugar guardadinho. É um pão de coco, recheado com coco e em formato de jacaré”. Além de vender na padaria, o padeiro colocava seus produtos em um balaio, posicionava na cabeça e saía pelas ruas de Cajazeiras e, por vezes, até ia até a zona rural vender seus produtos. A figura simpática se tornou uma das mais conhecidas da história de Cajazeiras e inspirou a música “Saóra”, do compositor Naldinho Braga, gravada originalmente pela banda Tocaia da Paraíba. Os versos são inspirados nas frases utilizadas por Saóra ao vender os pães. “Lá vem Saóra/Descendo a ladeira/ Com um balaio de pão na cabeça/ Tá vendendo bolinha de ouro/ Tá vendendo jacaré de coco/ Eh! Que paozão de arroba/ Corre que tá se acabando”. O compositor Naldinho Braga diz que a inspiração vem da memória de sua infância e adolescência em Cajazeiras. “A letra lembra a imagem de Saóra vendendo, no período da tarde, hora do lanche. ‘Oh que pãozão de arroba, corre que tá se acabando’ era um jargão utilizado por ele”, relatou. Já na terceira idade, antes de morrer, Saóra ainda não sabia que sua arte se tornaria patrimônio imaterial da Paraíba, mas havia se certificado de passar para os filhos o conhecimento, como ele disse no livro ‘O Pão da Memória’, de seu filho, Severino Cabral Filho. "O povo chama é o pão de Saóra, mas sabe por quê? Porque toda vida eu tive cuidado de fazer o meu pãozinho bem feito, e os meus filhos aprenderam foi comigo. Eu ensinei tudo o que eu sei, tudo eles aprenderam foi comigo, por isso é que o pão é gostoso e o povo reconhece desde 1947, até hoje", afirmou. Severino Cabral (Saóra) inventor do pão de Saóra Arquivo pessoal/Jana Cabral Vídeos mais assistidos do g1 Paraíba
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