Eleições na Argentina: Milei no comando do país é um risco para o Brasil?
A poucos dias do pleito presidencial na Argentina, pesquisas recentes mostraram o candidato ultraliberal Javier Milei liderando as pesquisas de intenção de voto antes da eleição presidencial de 22 de outubro, ainda que a disputa continue acirrada entre os três principais candidatos, segundo três levantamentos.
Todas as três pesquisas mostraram o ministro da Economia, Sergio Massa, em segundo lugar e a candidata conservadora Patricia Bullrich em terceiro.
Duas das pesquisas mostraram os candidatos dentro de um intervalo de 10 pontos percentuais, indicando que é provável que haja um segundo turno, já que nenhum deles deve garantir os votos necessários para vencer o pleito na primeira etapa.
Para vencer no primeiro turno, um candidato precisa obter 45% dos votos, ou mais de 40% com uma vantagem de mais de 10 pontos sobre seu rival mais próximo.
Esses cenários mostram que ainda há muita água para rolar até a definição do novo chefe do Executivo da Argentina. De qualquer forma, uma possível vitória de Milei preocupa e deixa o governo brasileiro em alerta, diante da retórica caricata e propostas nada convencionais para a economia.
Afinal, qual a real extensão dos efeitos que um possível governo seu poderia trazer ao Brasil? Seria mesmo possível dolarizar a economia, fechar o banco central da Argentina e romper com países latino-americanos? A estridência do “Trump latino” teria respaldo, ou arrefeceria em contato com a realidade social e econômica do país?
A seguir, confira a avaliação de Juliane Furno, doutora em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp, assessora da presidência do BNDES e professora de Economia na UERJ, e André Roncaglia, doutor em economia do Desenvolvimento pelo IPE-USP e professor de Economia na UNIFESP sobre o atual contexto.
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Dolarização da economia
Entre todas as promessas radicais de Milei, possivelmente essa seja uma das que mais despertam a memória afetiva dos argentinos, ainda que o alívio financeiro tenha durado pouco. Afinal, o país já passou por uma dolarização no início dos anos 90, quando o governo Menem herdou uma hiperinflação de seu antecessor, Raúl Alfonsín, que superou os 3000% em 1989.
Para frear a escalada diária e cada vez mais forte dos preços, o então Ministro da Fazenda do governo Menem, Domingos Cavallo, implementou a conversibilidade total do peso em dólar, na paridade de um por um. Os resultados foram positivos nos primeiros meses, pois se teve uma falsa sensação de controle da inflação. Porém, em pouco tempo, a economia desabou, pois, ao fixar o dólar, a Argentina não podia mais usar a taxa cambial para estimular a produção. Isso fez a indústria colapsar, já que não havia como os exportadores competirem com o câmbio valorizado. Resultado: o dinheiro começou a sair do país a rodo, e o golpe final veio com a maxidesvalorização do Real, em 1999.
Embora a paridade de um por um tenha sido abandonada, a economia da Argentina ainda é dolarizada em grande parte. Naquela época, o governo permitiu que residentes tivessem contas em dólares, e isso permanece até hoje.
“Na elaboração do Plano Real, não se permitiu a livre conversibilidade de contas de brasileiros em dólar. Por isso, o Brasil tem muito mais facilidade hoje de lidar com uma inflação vinculada ao elemento cambial do que a Argentina”, analisa Juliane Furno.
A economista ainda observa que dolarizar completamente a economia acaba com a capacidade de autonomia monetária, o que deixa o país muito mais vulnerável a ataques especulativos, desvalorização e desconfiança em relação a sua moeda. “Foi exatamente isso o que aconteceu no país vizinho”, avalia.
O problema é que o dólar é tão presente na vida da população argentina, que o país chega a ter mais de dez cotações para a moeda atualmente. No entanto, isso não basta para justificar os planos de Milei, pois o país não tem quantidade suficiente de reservas. Além disso, remete muito mais divisas para o exterior do que recebe, para pagar a dívida junto ao FMI (Fundo Monetário Internacional), o que torna a economia ainda mais vulnerável e suscetível a problemas macroeconômicos.
Para André Roncaglia, a fragilidade econômica do país hoje causaria temor no Congresso em relação à dolarização. O economista lembra que, na época do Plano Real, o Brasil cumpriu diversas etapas para que chegasse na reforma monetária, que gerou a paridade com o dólar, e a Argentina está muito longe dessa lição de casa.
“Na ocasião, o Brasil renegociou a dívida externa, o que trouxe muito capital para o País. E hoje a gente vê a Argentina na situação oposta, com muito mais dinheiro saindo do que entrando “, observa.
Outro ponto de alerta são os problemas sociais que a dolarização causaria. Com a dificuldade de exportar, os salários precisariam ser esmagados para que a produção pudesse continuar ao menor viável, o que, por si só, já causa um conflito social.
“Nessa situação, se não há legislação trabalhista que permita a redução salarial, o resultado é um desemprego em massa, ou seja, mais uma variável a considerar. Por tudo isso, é difícil imaginar que o Congresso apoie uma dolarização que retroalimentaria a fragilidade da economia e que naufragaria rapidamente”, avalia Roncaglia.
Fechamento do Banco Central da Argentina
Acabar com uma instituição monetária quase centenária teria impeditivos legais, institucionais, sociais, econômicos, e de toda ordem que se possa imaginar. Além disso, seria necessário maioria no Congresso, algo que Milei possivelmente não venha a ter caso seja eleito, segundo as pesquisas.
“Não estamos falando de uma simples decisão política, pois acabar com um banco central é uma questão estrutural, e se isso for feito em um momento como este, em que a Argentina deve mais do que tem para pagar, corre o risco de o barco virar”, observa Roncaglia.
Para ilustrar, o economista compara a situação a um transplante de coração, no qual o banco central seria o órgão, e a moeda, o sangue.
“O que Milei propõe com a dolarização e fechamento do banco central é como um transplante de coração e de todo sangue que alimenta os órgãos ao mesmo tempo. A questão é saber se o corpo (no caso, a economia) funcionaria bem depois de tudo isso. Essa é a dimensão das restrições que os seus planos apresentam”.
E como fica o comércio com o Brasil?
Apesar das sinalizações, ambos os economistas não acreditam em uma ruptura comercial por parte da Argentina.
“Acho praticamente impossível que seja interrompido o comércio com o Brasil, pois se isso acontecer, seu governo acaba no primeiro ano. Dolarizando ou não a economia, o país precisa de comércio para dar vazão à produção interna, e o Brasil é um grande parceiro comercial”, diz André Roncaglia.
Para o economista, o dano que Milei poderá causar caso seja eleito é gerar instabilidade no Mercosul e dificultar os avanços das negociações com esse bloco e com a União Europeia. Fora isso, questões estruturais impediram que o prejuízo fosse maior.
Com ou sem Milei, o fato é que as relações comerciais do Brasil com o vizinho vêm perdendo força há bastante tempo. Dados do Instituto Econômico de Pesquisa Aplicada (Ipea) mostram uma queda de 50% no comércio entre os dois países de 2010 a 2020.
E como reverter essa situação?
Mesmo com o comércio bilateral entre os dois países reduzindo há anos, até 2020 o mercado argentino ainda era o principal receptor de produtos manufaturados brasileiros. O distanciamento do parceiro comercial fez com que o Brasil fosse substituído pela China como maior fornecedor desses produtos, e é isso o que se precisa recuperar.
Para Juliane Furno, o reposicionamento econômico do Brasil junto à Argentina e a outros blocos econômicos passa, necessariamente, pela sofisticação da pauta exportadora. Segundo a economista, é preciso que o Brasil volte a ser o principal parceiro comercial da Argentina, para encontrar mercado para produtos focados na indústria, que gerem melhores empregos e mais arrecadação para o estado.
“A indústria paga muito mais imposto do que o agro, e, com o apoio do Banco dos Brics, a Argentina poderia exportar utilizando uma moeda alternativa ao dólar, seja o remimbi ou outra de algum dos países membros do banco”, observa. Além disso, os países para os quais a instituição empresta dinheiro contam com benesses da instituição, como condições melhores de financiamento e a possibilidade de pagar com a exportação dos próprios produtos.
Juliane, também destaca iniciativas do Brasil no sentido de tentar reativar o comércio com o país, e uma delas é um projeto do governo federal de fomento à exportação de produtos do agro, operacionalizado pelo BNDES.
Outra alternativa seria apostar em parcerias com o setor privado, como aponta André Roncaglia.
“Por exemplo, dá para construir cadeias de suprimentos regionais ligadas à transição energética, como produção local de baterias e beneficiamento de materiais para essa indústria que sofram restrições que Milei possa vir a colocar. Inclusive, as cadeias ligadas a novas fontes de energia podem se aproveitar do capital que a Argentina já tem, como a nova fábrica da Ford, que é a mais avançada da América Latina em termos de tecnologia”, diz Roncaglia.
Para completar, o Brasil também poderia estruturar um plano de cadeias produtivas com outros países da América Latina, atraindo empresas que estão na Argentina por dependerem dos recursos naturais do triângulo do lítio.
“Acho que há muitas possibilidades para exploração de petróleo e gás na Argentina, e o Brasil pode ajudar a estabelecer acordos com o setor privado. Mesmo que o setor público não venha a bancar isso, não é o fim do mundo para as relações entre os dois países”.
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