Déficit zero em 2024: debate não é mais se governo irá cumprir, mas quando meta será alterada

ministerio da fazenda bloomberg

Cerca de três semanas após o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionar com vetos o projeto de lei complementar que instituiu o novo marco fiscal – principal instrumento do atual governo para ancorar expectativas na seara das contas públicas -, o mundo político e o mercado já dão como certa a necessidade futura de revisão da meta de zerar o déficit primário em 2024.

O objetivo, considerado ousado desde seu anúncio pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), consta nas peças orçamentárias encaminhadas ao Congresso Nacional e, caso aprovado sem modificações, precisará ser perseguido pelo governo federal no exercício seguinte. O que significaria a necessidade de contingenciamentos a cada constatação de descompasso de receitas e despesas com o rumo desenhado para as contas públicas no período – uma tarefa sempre complexa na política, ainda mais em ano de eleições municipais, que costumam mobilizar esforços diretos de parlamentares.

O tamanho do desafio e os riscos associados a ele ampliam a disposição em Brasília por uma flexibilização da meta, a despeito dos possíveis efeitos colaterais no mercado sobre a credibilidade de uma regra fiscal recém-aprovada. Mas ao menos no governo a avaliação é que ao menos o timing hoje não é adequado para a manobra e ela poderia ser empurrada para o fim do ano, de modo a não desestimular o Legislativo a votar o novo pacote fiscal encaminhado pela equipe econômica do governo.

Na prática, uma mudança da meta fiscal dependeria apenas de ajuste no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2024, peça sob a relatoria do deputado federal Danilo Forte (União Brasil-CE), que já verbalizou mais de uma vez o ceticismo quando à possibilidade de o equilíbrio das contas públicas ser alcançado já no ano que vem e indicou disposição em rever os números.

No novo arcabouço fiscal, não há nenhuma restrição a esse tipo de ação. A regra prevê apenas que despesas terão um crescimento real de um exercício para outro entre 0,6% e 2,5%. O fator exato de correção será determinado à proporção de 70% do crescimento das despesas – percentual que pode cair para 50% em caso de descumprimento da meta de resultado primário estabelecida em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), considerando uma banda de tolerância de 0,25 ponto percentual para cima ou para baixo.

Pela norma, os agentes do governo não sofreriam sanções no caso de o objetivo não ser atingido, desde que ponha em prática alguns “gatilhos” fiscais uma vez constatado o risco de frustração da meta. Apesar de o dispositivo soar mais leniente com uma administração “gastadora”, a possibilidade de contingenciamento sobre as mais diversas rubricas do Orçamento público (incluindo emendas parlamentares) gera preocupações nos corredores do Congresso Nacional.

Especialistas em contas públicas e analistas políticos já consideravam ambiciosa a meta estabelecida pela equipe econômica do governo, mas de uns tempos para cá intensificaram as sinalizações de que, apesar de terem digerido positivamente a regra que substituiu o teto de gastos após as preocupações iniciais com o risco de um absoluto descontrole nos próximos anos, não compram a promessa de equilíbrio fiscal para 2024.

E os motivos vêm de uma série de fatores, que vão desde a expansão de despesas do novo governo, a percepção de menor apetite por corte de gastos, a desconfiança quanto ao potencial da agenda arrecadatória, até a avaliação de um cenário ainda desafiador no Congresso Nacional, seja para a aprovação de medidas impopulares de aumento de receita, seja com o avanço das chamadas “pautas-bomba” – com o patrocínio inclusive de aliados de primeira hora do Palácio do Planalto.

“Em um cenário de base aliada ainda desorganizada no Congresso, as pressões sobre o Orçamento parecem se avolumar, enquanto as matérias de interesse da Fazenda para recompor a arrecadação tendem a ser desidratadas. Se o desafio para entregar a meta de déficit zero em 2024 já era grande, alguns fatores nos últimos meses têm indicado que, se não houver correção de rumos, pode ser inevitável uma alteração da meta de primário ao final do ano”, observam os analistas da XP Política.

Para eles, apesar de finalmente ter efetivado a prometida minirreforma ministerial com o ingresso de André Fufuca (PP-MA) e de Silvio Costa Filho (Republicanos-PE) à Esplanada, o governo ainda não colheu os frutos do acerto com o “centrão”, que, nas palavras do próprio presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), ainda está pendente da distribuição de posições na Caixa Econômica Federal e na Funasa. Ontem (25), Lula disse, contudo, que no momento não pretende mudar o comando do banco público. O que pode dar início a uma nova queda de braço com o bloco informal de parlamentares.

Some-se a isso a percepção de menor disposição em aprovar as matérias do novo pacote fiscal de Haddad nos termos defendidos pela equipe econômica do governo – caso claro da medida provisória que impede a inclusão de descontos do ICMS na base de cálculo do IRPJ e da CSLL no caso de subvenções de custeio.

E um maior apetite dos congressistas para aprovar pautas com impacto negativo para as contas públicas. Neste caso, aparecem o projeto que prorroga a desoneração da folha a 17 setores econômicos até 2027 e que, durante a tramitação no Congresso Nacional, incluiu desconto na contribuição previdenciária de todos os municípios; o projeto de lei complementar que aumenta o limite de faturamento para enquadramento no Simples Nacional; o possível aumento nos repasses do Fundo de Participação dos Municípios (FPM); e a proposta que equipara a reintegração de servidores de ex-territórios, de autoria do próprio líder do governo no Congresso Nacional, o senador Randolfe Rodrigues (sem partido-AP).

Enquanto o governo busca medidas para garantir um adicional de R$ 168 bilhões de arrecadação em 2024, essas medidas têm potencial de aumentarem as despesas públicas em cerca de R$ 50 bilhões, segundo cálculos da XP.

Também entra na conta posição da área técnica do Tribunal de Contas da União (TCU), que refutou o argumento do governo de risco de “shutdown” na máquina pública em caso de necessidade do cumprimento dos pisos constitucionais de saúde e educação com o fim da vigência do teto de gastos.

O governo alega que o retorno integral dos pisos das duas áreas o faria gastar mais R$ 20 bilhões neste ano e que não haveria espaço fiscal para acomodar essas novas despesas – não previstas na peça orçamentária deste ano, o que exigiria realocação de despesas indicadas para outras pastas.

“Ainda que não houvesse pauta-bomba, o objetivo de alcançar o aumento de arrecadação estimado pela Fazenda para zerar o déficit já parece comprometido pelas iniciativas de parlamentares no sentido de esvaziar as propostas. As medidas que tratam da tributação de fundos exclusivos e offshores – essas com chances de aprovação – devem sofrer diminuição da alíquota sobre o estoque, de 10% para 6%, reduzindo também o potência de arrecadação. A MPV 1185, que trata da subvenção do ICMS, deve ser desconfigurada pelas emendas já apresentadas, preservando em boa parte os benefícios das empresas no uso do subsídio- e tendo como resultado uma frustração na estimativa de aumento de receitas do governo. A proposta do fim da dedutibilidade do JCP pode nem ser votada neste ano, já que lideranças no Congresso preferem debater esse ponto junto a uma eventual reforma da renda mais estrutural, que deve ficar para 2024”, pontuam os analistas da XP Política.

“Diante disso, parece pouco provável que, ao chegar em dezembro com algumas pautas-bomba aprovadas e medidas de receitas desidratadas, o governo não se veja obrigado a fazer uma revisão da meta de primário. Ao colocar na balança os avanços e retrocessos nesse semestre — ‘a bola está com o Congresso’ —, será inevitável uma recalibragem dos alvos para 2024 porque há um limite sobre as alternativas que ainda podem ser apresentadas pela Fazenda para fazer essa recomposição de receitas”, sustentam.

Considerando que a alteração da meta poderá ocorrer a qualquer momento durante a tramitação do PLDO no Congresso Nacional e que a apreciação do texto deverá ficar para dezembro, os especialistas acreditam que as atenções do mundo político e do mercado deverão se voltar para a magnitude da mudança no objetivo.

Neste caso, há mais um dilema para o Poder Executivo: quanto mais profundo o ajuste na meta, maior o impacto sobre a credibilidade do ajuste fiscal e da regra que acaba de entrar em vigor, além do efeito negativo sobre a urgência e necessidade da pauta de ajuste pelo lado das receitas pedido pela equipe econômica. Por outro lado, quando menor o ajuste, maior o risco de descumprimento e a possibilidade de contingenciamentos e controle de despesas em um ano eleitoral.

“Então, a discussão será sobre o grau da intervenção: hoje, a tese é de que, se de fato ocorrer, deve ser minimalista, de forma que não signifique um abandono do caminho traçado pela Fazenda na recuperação dos resultados primários. Dado o empenho da equipe econômica em manter o objetivo diante das adversidades, vemos este como o desfecho mais provável desse debate. Mas, para que essa contenção de danos seja exitosa quando chegar o momento, faz-se necessário desde já um maior alinhamento na articulação do governo com o Congresso”, concluem.

Já os analistas da consultoria Arko Advice observam uma mudança na percepção do mundo político sobre as condições de o governo cumprir a meta fiscal estabelecida para o ano que vem. Para eles, o otimismo observado ao longo do primeiro semestre teria dado espaço ao ceticismo em Brasília.

“Com isso, cresceu a convicção de que a meta, estabelecida pela equipe do ministro Fernando Haddad, não será cumprida. A promessa de zerar o déficit fiscal em 2024 é tida como improvável diante da ineficiência em otimizar os gastos e aumentar a arrecadação. Portanto, a dúvida agora não é se, mas quando a meta será revisada”, observam em relatório distribuído a clientes.

Eles veem no ministro Fernando Haddad um esforço genuíno em perseguir o objetivo estabelecido, mas destacam que a incerteza sobre o andamento do pacote bilionário de arrecadação no Congresso Nacional e, em caso de aprovação, as dúvidas sobre a capacidade de as medidas gerarem os efeitos esperados pela equipe econômica como entraves nessa batalha.

“Fora isso, há dois vetos ao novo marco fiscal que, na visão de especialistas, fragilizam a lei. Tais vetos ainda precisam ser analisados pelo Congresso, o que não tem data para acontecer. Se os parlamentares mantiverem a lógica da austeridade, ao menos um deles deve ser derrubado, aquele que se refere à proibição de que a LDO exclua despesas primárias da meta de resultado primário dos orçamentos fiscal e da seguridade social. Além disso, quem é contra mudanças na meta fiscal acredita que a LDO só será votada após a última ata do Copom, em novembro. Seria mais uma forma de ajustar o Orçamento à realidade imposta”, salientam.

Especialistas consultados pelo InfoMoney na edição de setembro do Barômetro do Poder indicaram chances razoáveis de os dois vetos de Lula ao novo marco fiscal ficarem pelo caminho após apreciação do Congresso Nacional.

“O Brasil tem 203 milhões de habitantes e em torno de doze deles acreditam que o déficit público no ano que vem será de zero ou muito perto disso. Todos os doze trabalham no Ministério da Fazenda”, ironizou o analista político Thomas Traumann em relatório distribuído a clientes na semana passada.

“Mais do que conseguir R$ 160 bilhões em receitas extras para anular o déficit no orçamento, o maior desafio do ministro Fernando Haddad é conseguir convencer as pessoas de que isso é factível”, pontuou.

Para ele, a minirreforma ministerial realizada pelo governo, “no melhor dos casos”, vai impedir a aprovação de “pautas-bomba”. O especialista acredita que, num momento de desconfiança generalizada quanto ao cumprimento da meta de déficit zero em 2024, o maior risco de Haddad é errar a mão.

“O terror no Ministério da Fazenda é que admitir o fracasso antes do jogo começar pode levar a uma situação similar à de agosto de 2015, quando o governo Dilma Rousseff enviou um projeto de orçamento com déficit e o mercado entrou em uma espiral de pânico”, avalia o especialista.

De fato, hoje no mercado o equilíbrio das contas públicas está longe de ser o cenário base. Na última edição do Relatório Focus, divulgado pelo Banco Central, a mediana das estimativas dos agentes financeiros consultados para o resultado primário em 2024 ficou em um déficit de 0,80% do PIB. Na semana passada as projeções apontavam para 0,73%.

O ministro Fernando Haddad tem tratado com naturalidade e minimizado a desconfiança do mercado. Em manifestações recentes, ele preferiu enfatizar o efeito do arcabouço fiscal na ancoragem de expectativas e na garantia de um horizonte sustentável para as contas públicas. O chefe da Fazenda tem dito que mais importante do que zerar ou não o déficit em 2024 é a garantia que o arcabouço daria para um horizonte controlado para a dívida pública, já que despesas passam a crescer menos do que receitas de forma estrutural.

“Isso está contratado. O que estamos fazendo está fora do marco fiscal, que é estipular metas ambiciosas para fazer com que isso aconteça mais rapidamente. E obviamente que nós levamos ao Congresso, que vai dar a última palavra sobre isso”, disse após participar de evento em São Paulo.

“Do nosso ponto de vista, estamos tranquilos com relação ao que estamos propondo, mas o Congresso é que vai se debruçar sobre as medidas provisórias e projetos de lei que foram encaminhados. É o Congresso que vai dar esse ritmo, porque é ele que tem a palavra final”, afirmou.

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Marcos Mortari

Marcos Mortari