Lula completa 100 dias de governo com retomada de bandeiras históricas e sob ceticismo na economia

lula posse

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) chega aos 100 dias de seu terceiro mandato à frente do Palácio do Planalto com uma intensa busca pelo resgate de programas sociais que marcaram suas duas gestões anteriores; com desafios para gerir uma coalizão ideologicamente dispersa em um país profundamente polarizado; e com obstáculos econômicos mais agudos do que aqueles que herdou 20 anos atrás.

Na avaliação de analistas ouvidos pelo InfoMoney, uma das principais marcas observadas na nova administração até o momento é o perfil mais centralizador de Lula em comparação com os outros dois mandatos e uma postura de maior enfrentamento político e necessidade de lidar com fatores limitantes menos presentes em suas outras gestões. Alguns também chamam atenção para acenos constantes a uma base mais à esquerda, de modo a mantê-la mobilizada no debate público em um ambiente político mais hostil.

Após uma vitória apertada nas urnas, com diferença de apenas 2,14 milhões de votos para seu antecessor, Jair Bolsonaro (PL), Lula não contou com uma transição regular e precisou negociar com parlamentares antes mesmo de receber a faixa presidencial, como na permissão para ampliação do teto de gastos em R$ 145 bilhões, pela chamada PEC da Transição, para garantir o pagamento do Bolsa Família “turbinado” e outros programas prometidos durante a campanha.

“Estamos falando de muito mais do que 100 dias. É uma administração que começou antes do seu início formal”, observa o cientista político Rafael Cortez, sócio da Tendências Consultoria Integrada e professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

“São 100 dias muito marcados pelo passado. Os conflitos políticos são muito decorrentes da maneira como se encerrou a administração Bolsonaro. E, do ponto de vista político, é um governo que toma decisões e as legitima como uma agenda de reconstrução de políticas públicas”, pontua o especialista.

“Essa reconstrução começa sobretudo por mudanças da estrutura ministerial, em decisões do governo anterior. Houve uma transição mais brusca, do ponto de vista de impacto da política pública, do que o país estava acostumado”, prossegue.

Contraditoriamente à necessidade de “agir como presidente” antes mesmo da largada de seu governo, Lula ainda adota tom de campanha em muitos de seus discursos já como chefe do Poder Executivo, não se furtando a confrontar a gestão anterior ou buscar novos vilões em um esforço constante para manter ativa sua base eleitoral em um país polarizado.

Aprovação de Lula após 100 dias de governo

Não por acaso o Datafolha mostrou que, após três meses, o governo Lula é aprovado por 38% dos brasileiros com 16 anos ou mais. A marca supera os 32% de Bolsonaro no mesmo período de seu mandato e pode ser vista como positiva no atual contexto de conflagração política, mas é significativamente menor do que a de seus outros dois mandatos: 43% em 2003 e 48% em 2007. O levantamento foi realizado nos dias 29 e 30 de março e contou com 2.028 entrevistas.

Para Cortez, trata-se de um governo com capital político mais limitado do que no passado e com um presidente que ainda aprende a lidar com novos fatores de constrangimento, que vão desde a popularidade menor e a polarização política, até um contexto institucional distinto, com o Congresso Nacional fortalecido e o Banco Central autônomo, por exemplo.

“Não é tanto um Lula mais à esquerda, mas é um Lula aprendendo a lidar com limitações políticas − algo que ele parecia estar desacostumado ao deixar o Palácio do Planalto com avaliação positiva acima dos 80%”, diz.

Na avaliação do cientista político Ricardo Ribeiro, da consultoria Ponteio Política, o quadro de polarização associado a um contexto político e econômico mais desafiador deve impor um teto mais baixo para a popularidade de Lula em seu terceiro mandato.

“O que há de muito diferente é a conjuntura, tanto econômica quanto política. A situação econômica é menos promissora do que nos dois primeiros mandatos de Lula. E o ambiente político é mais desafiador, há uma parcela antipetista muito mais forte e muito mais disposta a fazer oposição ferrenha ao governo agora do que em 2003”, considera.

“Lula pode fazer o melhor governo que for que não vai conseguir chegar nos 70% ou 80% de aprovação, porque há uma parcela da população antipetista convicta e que dificilmente mudará”, diz o especialista.

“Por outro lado, essa polarização cria um piso relativamente alta para a avaliação positiva do governo. Há uma parcela importante do eleitorado que, além de ser simpática ao PT, é muito antibolsonarista. Como vejo o bolsonarismo como a força de oposição mais importante, isso também pode dar um piso para a avaliação do governo. É difícil Lula ter aprovações tão ruins quanto Dilma e Temer”, pondera.

Resgate aos programas sociais e aposta no contraste

O Datafolha também mostrou que a avaliação da atual administração é mais alta entre mulheres (42%) do que entre homens (34%), e entre os menos escolarizados (48%), mais pobres, com renda familiar mensal de até dois salários mínimos (45%), residentes da região Nordeste (53%) e de religião católica (45%). A margem de erro da pesquisa é de 2 pontos percentuais para cima ou para baixo.

“A principal marca do governo Lula III é a área social”, observa o analista político Carlos Eduardo Borenstein, da consultoria Arko Advice.

Bolsa Família

Entre as principais medidas, ele lembra a recriação do Bolsa Família, a partir da retomada de condicionantes e parâmetros do programa mais conhecido das administrações petistas, mas agora com repasses mensais de R$ 600,00, com possibilidade de R$ 150,00 adicionais por criança com até sete anos e R$ 50,00 a famílias que possuírem gestantes, crianças com idade entre sete e doze anos e adolescentes até dezoito anos.

Minha Casa, Minha Vida

Também se destacam o Minha Casa, Minha Vida, que volta com a “faixa 1”, destinada a famílias de menor poder aquisitivo, com renda bruta mensal de até R$ 2.640,00; o Mais Médicos, que busca ampliar a oferta de serviços de saúde à população, sobretudo em áreas mais distantes de grandes centros; a política de valorização do salário mínimo; e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que busca ampliar o acesso à alimentação saudável e incentivar a produção local. Além do novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), em fase de estudos.

“Lula está priorizando o social e recriando agendas bem avaliadas em suas gestões anteriores, olhando muito para o eleitorado de renda de até dois salários, que melhor avalia seu governo. Foi também um segmento decisivo para sua vitória [nas últimas eleições]”, pontua Borenstein.

Polarização política

Para o especialista, apesar da formação de um governo diverso, que buscou reunir forças políticas fundamentais para a vitória nas urnas em outubro de 2022, o ambiente de polarização política estimula Lula a concentrar esforços voltados à sua base social no início do novo governo, em meio às dificuldades para avançar em novas frentes.

“As pesquisas mostram uma sedimentação da polarização muito grande. É um país socialmente muito dividido. Lula acaba sendo empurrado para essa polarização. Como sua popularidade decorre muito da adesão dos setores de baixa renda ao seu governo, ele faz uma série de sinalizações para as classes populares, e, em certa medida, isso polariza com o que a esquerda chama de ‘elite econômica’”, observa.

“É um dilema que o governo precisa enfrentar, mas, em função dele, Lula adota uma agenda mais de esquerda hoje [do que em outros mandatos]. Não uma agenda de esquerda ortodoxa, mas que se aproxima muito do desenvolvimentismo, que olha muito para um programa de reconstrução do país com uma matriz diferente da matriz mais fiscalista que orientou os governos [Michel] Temer e [Jair] Bolsonaro”, complementa.

O mesmo levantamento do Datafolha mostra que 29% dos brasileiros aptos a votar avaliam o novo governo de Lula como ruim ou péssimo, enquanto 30%, como regular. O índice de reprovação é mais elevado entre os mais escolarizados (40%), nas parcelas mais ricas (47% na faixa de renda familiar de 5 a 10 salários, e 50% na faixa acima de 10 salários), na região Sul (34%), entre brancos (39%).

Na avaliação de Wagner Parente, CEO da BMJ Consultores Associados, os 100 primeiros dias do novo governo foram marcados por “uma ampla reestruturação na Esplanada dos Ministérios, acomodação de aliados e partidos de centro, assim como uma retomada dos programas notórios das antigas gestões do Partido dos Trabalhadores”.

“No entanto, o cenário político é bastante diferente de 2003, quando Lula chegou à Presidência pela primeira vez. Ao longo dos últimos meses, o presidente viu a polarização social se intensificar, um Congresso dividido e que disputa o protagonismo de diversas matérias e presenciou a dificuldade de construir uma base de governo sólida”, escreveu em relatório.

A volta de certa cordialidade nas relações institucionais foi outra marca que Lula quis deixar por contraste ao antecessor – sobretudo em relação ao Supremo Tribunal Federal (STF), alvo de constantes ataques de Bolsonaro. Ele também deixou destacada a mudança de postura em relação ao meio ambiente, aos povos indígenas e à política externa.

No primeiro caso, trouxe de volta para perto Marina Silva (Rede Sustentabilidade), uma das maiores referências mundiais na agenda do clima, com a promessa de trazer transversalidade ao assunto, de forma a integrá-lo a todas as temáticas do governo.

Já a segunda mudança ficou evidente no enfrentamento à crise humanitária na terra indígena yanomami, em razão da invasão de garimpeiros ilegais e suas consequências via confrontos diretos ou danos ambientais com impactos diretos sobre a vida daquela população.

E a terceira, com a ênfase dada pelo novo comando do Poder Executivo às relações exteriores. Em 100 dias, Lula fez três viagens internacionais: para a Argentina, o Uruguai e os Estados Unidos. Ele também teria viajado à China, mas precisou adiar por motivos de saúde (e a visita foi remarcada para esta semana). O presidente também teve uma série de interações por ligações e videoconferências com chefes de Estado. Sua posse, em 1º de janeiro, contou com a presença de 21 representantes de governos.

Cicatrizes dos atos golpistas

Para o analista político Thomas Traumann, apesar da experiência acumulada no Palácio do Planalto, o Lula III ainda é marcado por idas e vindas.

“Lula da Silva venceu a eleição mais disputada da história, herdou um país dividido com a economia em frangalhos pelo vale-tudo eleitoral e uma imagem no exterior horripilante. Cem dias depois, o país segue repartido ao meio, bons programas sociais foram retomados, as perspectivas econômicas pioraram, o risco fiscal começou a ser tratado e a reputação externa melhorou infinitamente. Surpreendente para a equipe liderada por um presidente em terceiro mandato, no entanto, o governo ainda age por solavancos”, escreveu em relatório a clientes.

Um dos episódios que mais marcaram os primeiros 100 dias de governo Lula ocorreu em 8 de janeiro, uma semana após a posse do presidente, quando vândalos que manifestavam apoio a Bolsonaro invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes em Brasília.

Os danos causados aos patrimônios do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF) além da clara imagem de um ataque à democracia do país provocou um ambiente inédito que aglutinação de forças políticas no país, mas que se dissipou com o tempo. Para muitos analistas, Lula desperdiçou a chance de furar sua bolha de forma efetiva e duradoura, reorganizando o conceito de governo de frente ampla vendido na eleição.

“Num dos maiores erros políticos da sua longa carreira, Lula perdeu a oportunidade de transformar a intentona golpista em um divisor de águas dentro do bolsonarismo, permitindo que o tema fosse partidarizado, como se a depredação de 8 de janeiro fosse contra ele, Lula, e não contra a democracia”, avaliou Traumann.

Para Cortez, o 8 de Janeiro exacerbou no Partido dos Trabalhadores uma preocupação com a sustentabilidade do mandato presidencial e o fantasma da experiência vivida no governo de Dilma Rousseff (PT).

“Lula se sentiu mais acuado e optou por aumentar esse senso de urgência e se exacerbou a percepção de fragilidade. Curiosamente, um pouco do discurso e de comportamentos da eleição deixaram de estar presentes nesses 100 dias”, observa.

“Na eleição, havia uma ideia de abertura. Havia uma crítica muito forte ao governo Bolsonaro, mas tinha uma sinalização a outros grupos ao longo da campanha. Isso teve a ver com a escolha de [Geraldo] Alckmin, depois com a aproximação em relação a Simone Tebet”, destaca.

“Agora, mesmo com esse risco, o presidente não conseguiu, por meio de sua agenda, manter a percepção de que sua administração é de frente ampla. Para fazer jus à administração de frente ampla, não basta só composição ministerial. É necessário que tenha a ver com a agenda do governo. E a agenda econômica se chocou com a ideia de frente ampla”, complementa.

Na avaliação do especialista, especialmente no campo econômico, Lula tem buscado mais o resgate de agendas de seus outros mandatos do que a construção de pautas comuns às diversas forças que compuseram sua coalizão.

Como resultado, também haveria um desperdício da oportunidade dada pelo 8 de Janeiro neste campo. “A ideia de que Lula era, para alguns grupos, um ‘mal menor’ do que seria Bolsonaro, vai ficando explícita em seus índices de popularidade e em capital político para implementar sua agenda”, pontua.

Agenda econômica

A Economia é a área em que Lula enfrenta maior ceticismo por parte de investidores, empresários e a própria opinião pública em geral. Talvez este seja o campo que mais tire o sono do mandatário nos últimos meses.

Uma pesquisa feita em março pela Quaest com 82 representantes de fundos de investimentos com sede em São Paulo e no Rio de Janeiro mostrou que 98% dos entrevistados acreditam que a política econômica do país está indo na direção errada. Para 73%, há risco de recessão em 2023, e 42% esperam uma queda de investimentos externos no Brasil nos próximos anos.

Já o Datafolha mostrou que, para a opinião pública em geral, 15% indicaram a economia com a área sob a gestão de Lula que está se saindo pior até agora. Apenas 3% apontaram este campo como o de melhor desempenho da atual administração.

Nos primeiros 100 dias de Lula III, as preocupações com o risco fiscal e a atividade econômica dominaram manifestações de investidores e empresários. “Por um lado, o período coincidiu com um cenário internacional adverso e perspectivas de baixo crescimento. Por outro lado, o governo não conseguiu agradar integralmente o mercado, que esperava uma política econômica mais ortodoxa”, observou Wagner Parente, da BMJ.

As sinalizações de recomposição de políticas públicas caras à administração petista e a ausência de contrapartidas em cortes de despesas aprofundou a avaliação de agentes de risco de desequilíbrio das contas públicas.

Mas logo no primeiro mês de governo, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), anunciou um conjunto de medidas para reduzir o déficit para no máximo 1% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2023. O conjunto de iniciativas foi dividido em quatro grandes grupos, com foco maior em recomposição do Orçamento público. São elas:

1) reestimativa de receitas (R$ 36,4 bilhões);

2) ações de receitas permanentes (R$ 83,28 bilhões);

3) ações de receitas extraordinárias (R$ 73 bilhões); e

4) redução de despesas (R$ 50 bilhões).

Entre as medidas, estão uma reestimativa de receitas; a exclusão do ICMS do cálculo dos créditos tributários do PIS e da Cofins na aquisição de produtos; a reoneração do PIS e da Cofins sobre combustíveis; a retomada de alíquotas do PIS e da Cofins incidentes sobre receitas financeiras; o retorno do “voto de qualidade” exercido por representantes da Fazenda Nacional no Carf; a possibilidade de “denúncia espontânea” ao contribuinte que autodeclarar uma mudança de regime jurídico sem penalidades; a criação de um programa excepcional de regularização fiscal similar ao Refis; e uma limitação nos processos que vão para análise do Carf.

Arcabouço fiscal

Haddad também aprofundou a interlocução com agentes econômicos e, em aceno de busca pelo equilíbrio das contas públicas, antecipou de agosto para março a apresentação de um novo marco fiscal, para substituir a regra do teto de gastos. O arcabouço gerou reações distintas entre investidores, que ainda esperam medidas adicionais para acreditarem nas metas de resultado primário estabelecidas pelo governo para os próximos quatro anos.

O novo arcabouço fiscal, que ainda precisa ser formatado como projeto de lei complementar para análise do Congresso Nacional, tem como pilar a meta de gastos, que define que a despesa real deve crescer anualmente dentro de um intervalo que vai de 0,6% a 2,5%.

Pela regra, as despesas devem crescer a uma taxa de 70% da variação real da receita líquida apurada em 12 meses até junho do exercício anterior. Em situações de retração, o crescimento mínimo real é garantido, o que traz aspectos anticíclicos para a regra e assegura aumento para os gastos acima da inflação a cada novo exercício sob qualquer hipótese.

A proposta também cria uma meta de resultado primário, com bandas de tolerância de 0,25 ponto percentual para cima ou para baixo. Neste caso, os objetivos para os quatro anos de uma gestão são definidos logo no início de cada governo.

A gestão de Lula estabeleceu como compromisso um déficit de 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2023, equilíbrio no ano seguinte e superávit de 0,5% e 1% em 2025 e 2026, respectivamente. Percentuais que levantaram dúvidas entre agentes econômicos.

Adicionalmente, há um piso mínimo para investimentos públicos, calculado com base nos valores gastos nesta faixa em 2023, corrigidos pela inflação.

Caso seja alcançado resultado primário superior à banda superior estabelecida, o valor excedente poderá ser empenhado em investimentos no exercício seguinte. Na hipótese de descumprimento do piso da meta, haverá redução na variação da despesa, de 70% para 50%, sobre o crescimento da receita.

Além dos acenos para a política fiscal, o governo tem investido fortemente na aprovação da reforma tributária pelo Congresso Nacional. Um dos sinais mais enfáticos nesse sentido veio com a criação de uma secretaria extraordinária no Ministério da Fazenda para tratar do assunto sob a coordenação do economista Bernard Appy, um dos maiores especialistas no tema.

A meta do governo é aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que simplifica impostos sobre o consumo, nos moldes de um Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), a partir do que hoje se discute nas PECs 45 e 110, ainda no primeiro semestre na Câmara dos Deputados e até outubro no Senado Federal. Na sequência a ideia, é conduzir uma segunda etapa da reforma, concentrada na tributação sobre a renda.

A expectativa é que as medidas tragam maior simplicidade ao sistema tributário brasileiro, reduzindo o volume de contenciosos, distorções setoriais, guerra fiscal entre os entes subnacionais, a não cumulatividade e uma cobrança mais progressiva, na qual pobres paguem proporcionalmente menos do que os mais ricos.

Ruídos

Em contraste com esta agenda, investidores observaram com atenção as sinalizações de Lula por um aumento de investimentos públicos, a retomada do papel mais ativo de bancos estatais no financiamento de obras de infraestrutura e mesmo a revisão de medidas econômicas tomadas em governos anteriores, com destaque para a desestatização da Eletrobras, a política de preços da Petrobras e o novo marco do saneamento básico.

Tais acenos aprofundaram a percepção de risco entre agentes econômicos, agravada pelo fogo amigo no governo, com disputas envolvendo a ala política e Haddad (nas quais o chefe da Fazenda acabou com vitórias importantes), mas principalmente ataques de Lula à política monetária conduzida pelo Banco Central sob o comando de Roberto Campos Neto.

Há uma crescente preocupação e ansiedade de Lula com as perspectivas econômicas em seu mandato. O cenário externo mais desafiador e a tendência de desaceleração no plano doméstico, agravada pela manutenção da taxa básica de juros (a Selic) a 13,75% ao ano para conter a inflação, têm ampliado a pressão do mandatário por soluções.

As críticas recorrentes direcionadas ao Banco Central, por um lado, geraram preocupação sobre o quadro de autonomia da instituição e com a possibilidade de ações do governo em direções como a elevação da meta de inflação perseguida pela autoridade monetária. Os ataques, por outro lado, encontraram eco em segmentos da população e do setor produtivo.

“A leitura de que a questão econômica é o fator fundamental para dar um pouco mais de tranquilidade ao governo é correta. Mas a pressa e a ansiedade por garantir um resultado econômico expressivo desde o primeiro ano de mandato também é um risco, porque isso que está gerando essa pressão acentuada e arriscada em cima do Banco Central, que cria ruídos e aumenta a apreensão do mercado”, observa Ricardo Ribeiro, da Ponteio Política.

Para Rafael Cortez, da Tendências Consultoria Integrada, do ponto de vista institucional, a relação do novo governo com o Banco Central é a principal novidade enfrentada por Lula em seu novo mandato – o primeiro sob as regras de autonomia da autoridade monetária. O especialista também observa os atritos em parte como resultado do processo de polarização política recente.

“No Lula I, vários membros do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) permaneceram no governo por um período. Foi uma transição muito mais suave. Quando o governo Lula III se forma, qualquer menção ou proximidade de um indivíduo com o governo anterior já foi motivo para esse nome não entrar na nova administração. Mas Lula não consegue fazer isso com o presidente do Banco Central”, observa.

Relações com o Congresso

Como manda a cartilha do presidencialismo de coalizão, Lula cedeu espaços importantes na Esplanada dos Ministérios a partidos políticos na tentativa de construir uma base de apoio sólida no Congresso Nacional. Ao todo, nove pastas foram distribuídas a nomes do União Brasil, do MDB e do PSD, que ainda assim permanecem como independentes em ambas as casas.

“A distribuição desses cargos é uma moeda de troca comum no presidencialismo de coalizão, mas ainda não foram suficientes para dar segurança ao governo no parlamento”, avalia Parente.

No pontapé dos trabalhos legislativos, Lula pôde comemorar a aposta correta nas reconduções de Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MG) para as presidências da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, respectivamente, evitando o risco de desgastes com a construção de relação hostil com os comandos das casas legislativas.

O analista da Ponteio Política destaca, ainda, que a distribuição de cargos no segundo escalão e o planejamento para o uso das verbas destinadas às emendas parlamentares podem ser instrumentos importantes na articulação política do governo – sobretudo em votações fundamentais que se aproximam, como é o caso da reforma tributário.

As apostas em Lira e Pacheco geraram resultados favoráveis para o governo na distribuição de posições de comando nas comissões temáticas. No Senado Federal, a oposição, que lançou Rogério Marinho (PL-RN) na disputa, ficou alijada dos principais espaços, o que fez com que nomes mais próximos ao governo assumissem o controle dos colegiados mais relevantes.

Na Câmara, onde foram criadas cinco comissões, o PT garantiu a presidência dos dois colegiados mais cobiçados: a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) e a Comissão de Finanças e Tributação (CFT), mas a escolha de representantes pelas lideranças partidárias mostrou que ainda há desafios pela frente.

“O que tem mais chance de ser uma marca permanente do governo é um pragmatismo político, principalmente na relação com o Congresso. O governo posicionou bem as peças na relação com o Congresso”, avalia Ribeiro.

“Lula, ao contrário do que acontece quando trata da economia muitas vezes, está sendo bastante pragmático e cuidadoso na política. Ele mantém uma boa relação com os presidentes da Câmara e do Senado – e vale lembrar que Arthur Lira era da tropa de choque de Bolsonaro, investiu bastante na tentativa de reeleição do ex-presidente”, diz o especialista.

“A base governista ainda não está organizada e não foi testada ainda, mas, a meu ver, é um governo que tende a ser forte politicamente e vai evitar ao máximo confronto com o Congresso”, complementa.

Já o analista político Carlos Eduardo Borenstein, da Arko Advice, acredita que a gestão da governabilidade será um “desafio constante” para Lula. “Hoje o Congresso é muito mais independente, e, em relação aos governos anteriores de Lula e de Fernando Henrique Cardoso, é bem mais fragmentado, do ponto de vista partidário, o que faz com que não exista um grande partido. Não há como juntar cinco ou seis legendas e construir uma maioria segura”, observa.

“O governo vai ter um desafio permanente, porque a fragmentação partidária é grande, o poder de agenda do Palácio do Planalto ainda é grande, mas é inferior ao que foi no passado, muito em função da maior autonomia que o Congresso tem – inclusive no que diz respeito ao controle de recursos. Isso diminui a força do Palácio do Planalto”, complementa.

Soma-se a isso um impasse entre Lira e Pacheco envolvendo a tramitação da medidas provisórias que coloca em risco o andamento de discussões consideradas importantes pelo Palácio do Planalto.

Atualmente, há um conjunto de 16 MPVs de Lula que aguardam instalação de comissão mista no parlamento. Um acordo recente garantiu a instalação e parte delas, e o governo deverá trabalhar na fusão de textos para diminuir a necessidade de novos colegiados.

Outro caminho também será encaminhar ao Legislativo projetos de lei em caráter de urgência constitucional, de modo a garantir que os textos de MPVs não apreciadas sejam votados antes de caducarem – ou seja, perderem a validade legal.

“Ao buscar um acordo para contornar o impasse das comissões mistas, Lula se mostra aberto ao diálogo com ambas as Casas. Em contrapartida, demonstra que o Congresso Nacional possui um grande poder de decisão sobre o Executivo”, pontua Parente.

“A relação entre Congresso Nacional e Executivo tende a permanecer vulnerável no primeiro ano de governo, ao passo que se buscam consensos diante de um Legislativo cada vez mais robusto. Sem base definida, o governo pode encontrar maiores dificuldades em temas menos unânimes de sua agenda, como questões trabalhistas e matérias menos consensuais em âmbito econômico, mas todo avanço que o governo buscar necessitará de concessões para o Parlamento”, conclui.

Lula completa 100 dias de governo com retomada de bandeiras históricas e sob ceticismo na economia appeared first on InfoMoney.

Marcos Mortari

Marcos Mortari