Tributação das “offshores”: o que o governo mudou no novo projeto sobre o assunto?
Quatro meses após a edição de medida provisória que tratava da tributação sobre aplicações financeiras no exterior, que perdeu validade sem ser apreciada pelo Congresso Nacional (MPV 1.171/2023), a taxação das “offshores” voltou à mira do governo em um projeto de lei assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) com ajustes sobre a versão original.
Um dos principais responsáveis pela redação da matéria, Daniel Loria, diretor de Programa da Secretaria Extraordinária de Reforma Tributária do Ministério da Fazenda, conta que o governo federal dialogou com o mercado e com os parlamentares ao longo dos meses de tramitação da medida provisória e acatou 19 sugestões no novo texto encaminhado na semana passada.
“Fico muito satisfeito com o processo da [construção das regras de tributação para] ‘offshore’ e o produto que conseguimos entregar para o Congresso. Temos uma série de regras e cuidados em relação ao contribuinte ‒ o que vai ser tributado; o que não vai ser; se vier lucro do Brasil, vai ser excluído da base de tributação; se tiver imposto pago no exterior, vai ser compensado; se tiver prejuízo no ano, vai compensar o lucro do ano seguinte. É um texto robusto, que foi elogiado pelos colegas [do mercado financeiro]“, disse ao InfoMoney.
Assista à entrevista na íntegra pelo vídeo acima ou clicando aqui.
O projeto de lei, que tramita em regime de urgência no Congresso Nacional, cria uma tabela unificada para a cobrança de imposto sobre rendimentos de aplicações financeiras de pessoas físicas no exterior e os lucros gerados por controladas (“offshores”), com alíquotas que vão de 0% (ganhos anuais até R$ 6 mil) a 22,5% (ganhos anuais que superarem R$ 50 mil). Desta forma, ela busca afastar dúvidas sobre a tabela de referência usada por cada modalidade – se a progressiva de IRPF (que vai de 0% a 27,5%) ou a de ganhos de capital (que vai de 15% a 22,5%).
No caso de investimentos diretos, o texto mantém o chamado regime de caixa (em que o imposto é recolhido apenas no momento do resgate, amortização, alienação, vencimento ou liquidação das aplicações), mas a declaração passa a ser anual.
As “offshores” são o ponto central da proposta, tanto do ponto de vista regulatório quanto como fonte de arrecadação. Para contribuintes que usam essas estruturas, o texto prevê substituição do regime de caixa para o chamado regime de competência (em que os lucros passam a ser tributados anualmente, mesmo se mantidos pela controlada no exterior).
O texto também regulamenta os “trusts”, que são uma ferramenta contratual sofisticada muito usada no exterior para a organização do patrimônio e da sucessão por famílias de alta renda. Pelo dispositivo, eles passam a ser considerados entidades transparentes, com necessidade de declaração pelos titulares.
A matéria ainda traz a opção para o contribuinte atualizar o valor dos seus bens e direitos no exterior para o valor de mercado em 31 de dezembro de 2023 (na medida provisória original, a atualização ia apenas até dezembro de 2022), tributando a diferença por uma alíquota favorecida de 10%. Neste caso, o imposto deverá ser pago até 31 de maio de 2024.
Aqueles que decidirem não aderir permanecerão nas regras antigas, mas sujeitos à nova tabela de alíquotas do IRPF, caso o projeto de lei seja aprovado pelo Congresso Nacional.
Mudanças à vista
Após rodadas intensas de diálogo com agentes econômicos e integrantes do mundo político, o governo acatou sugestões de mudanças na proposta. As principais delas estão concentradas em dois eixos. O primeiro envolve a presença de ativos ilíquidos na carteira de “offshores” mantidas por brasileiros.
“Às vezes, você tem uma ‘offshore’ com uma aplicação em uma startup ou em um fundo de venture capital, e são ativos que não têm mercado secundário ‒ ativos alternativos sem liquidez. E, pela regra contábil, às vezes você tem a avaliação desses ativos a valor justo impactando o resultado contábil ‒ que é a base da tributação”, explicou Loria.
Para atenuar esse risco, a equipe econômica do governo atendeu um pedido para que nesses casos fosse mantida a regra de apuração pelo regime de caixa em vez do regime de competência, que exigiria a o recolhimento periódico de tributos sobre os supostos ganhos com os investimentos mesmo antes do resgate ‒ o que poderia implicar em distorções no caso de ativos sem liquidez no mercado.
A saída encontrada pelo Ministério da Fazenda foi inspirada em um modelo usado nos Estados Unidos, chamado “check the box”. Nele, a pessoa física vai poder desconsiderar a “offshore” da qual é titular para fins de imposto de renda e declarar aqueles bens subjacentes diretamente em sua carteira na declaração do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF).
Com isso, o contribuinte retira a necessidade de enquadramento ao regime de caixa em suas “offshores” (desde que atendam a situação descrita) e atrai para si o regime de competência para a declaração. Neste caso, porém, o texto é claro em apontar que tal opção é irrevogável e irretratável durante todo o prazo em que a pessoa física detiver a referida entidade controlada no exterior.
Outra sugestão acatada pela pasta envolve a possibilidade de pessoas físicas compensarem perdas financeiras apuradas com ganhos da mesma natureza no exterior, aproximando ao que existe de regras no mercado doméstico sobre o assunto.
“As duas regras juntas vão viabilizar, a favor do governo, uma declaração e uma transparência absoluta em relação a suas aplicações ‘offshore’, e, na perspectiva do contribuinte, uma regra de tributação justa e equilibrada de compensação de ganhos e perdas e ausência de tributação antes da hora”, disse Loria.
O texto encaminhado para a Câmara dos Deputados também incluiu dispositivo que explicita que a variação cambial de depósitos em conta corrente ou em cartão de débito ou crédito no exterior não ficará sujeita à incidência de IRPF, desde que os depósitos não sejam remunerados e sejam mantidos em instituição financeira no exterior reconhecida pelo Banco Central local.
O mesmo vale para a variação cambial de moeda estrangeira em espécie, no ano-calendário, até o limite de alienação equivalente a US$ 5 mil. O montante que exceder esta marca ficará sujeita à regra de tributação cujas alíquotas variam de 15% a 22,5%.
Outra mudança foi a inclusão no rol exemplificativo de aplicações financeiras no exterior (portanto, sujeitas às novas regras) de criptoativos e carteiras digitais ou contas correntes com rendimentos. No caso das apólices de seguro, foi feita uma restrição para aquelas cujo principal e cujos rendimentos sejam resgatáveis pelo segurado ou beneficiários.
O projeto agora também prevê que pessoas físicas que declararem rendimentos a partir de aplicações financeiras por ele afetadas poderão deduzir do IRPF devido na ficha da Declaração de Ajuste Anual (DAA) o tributo sobre a renda pago no país de origem dos rendimentos, desde que a compensação esteja prevista em acordo ou convenção internacional firmado com o país de origem dos rendimentos ou haja reciprocidade de tratamento em relação aos rendimentos produzidos no País.
Mas a dedução não poderá exceder à diferença entre o IRPF calculado com a inclusão do respectivo rendimento e o tributo sem ela. Também não poderá ser deduzido do IRPF devido o imposto sobre a renda pago no exterior que for passível de reembolso, restituição, ressarcimento ou compensação, sob qualquer forma, no exterior. E um imposto pago fora do país e não deduzido no ano-calendário não poderá ser deduzido do IRPF devido em outros períodos.
Pelo texto, caso o valor das perdas no período de apuração supere os ganhos, o essa parcela poderá ser compensada com lucros e dividendos de entidades controladas no exterior, enquadradas ou não nas hipóteses previstas para incidência do chamado regime de competência, que tenham sido computados na Declaração de Ajuste Anual no mesmo período de apuração. Se mesmo assim houver acúmulo de perdas não compensadas, a contrapartida poderá considerar períodos de apuração posteriores.
Na definição das regras para as “offshores”, o projeto de lei incluiu dispositivo que diz que, no caso das sociedades, dos fundos de investimento e das demais entidades no exterior com classes de cotas ou ações com patrimônios segregados, cada classe será considerada como uma entidade separada.
Além disso, o enquadramento de controladas no exterior às novas regras obedecerá uma linha que estabelece que a renda ativa própria seja inferior a 60% da renda total. Na versão original da medida provisória que caducou no Congresso Nacional, a regra valia para uma relação abaixo de 80% ‒ o que naturalmente abrangeria um volume maior de “offshores”.
O texto também oferece indicações mais claras do que considera renda ativa própria, passando a apontar ganhos a partir de juros, aplicações financeiras e intermediação financeira para instituições financeiras reconhecidas e autorizadas a funcionar pela respectiva autoridade monetária; ganhos com aluguéis no caso de empresas que exerçam efetivamente, como atividade principal, a atividade comercial de incorporação imobiliária ou construção civil no país em que estiverem situadas; ou com dividendos e participações societárias em casos de participações diretas ou indiretas em entidades que apurem renda ativa própria superior a 60% da renda total.
Em relação aos lucros das controladas sujeitas à mudança de regras, o texto faz um ajuste para excluir da apuração individualizada em balanço anual a parcela relativa às participações dela em outras controladas, inclusive quando a entidade for organizada como um fundo de investimento, evitando, desta forma, o risco de dupla incidência de tributo.
E a moeda de conversão para apuração dos lucros deixa de ser necessariamente o dólar para a moeda estrangeira divulgada, em que as operações foram realizadas. O período de fechamento do câmbio permanece o último dia útil de dezembro, seguindo cotação para venda divulgada pelo Banco Central.
Também pode ser deduzida do lucro da pessoa jurídica controlada, direta ou indireta, a parcela correspondente aos lucros e dividendos de suas investidas que forem pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil e os rendimentos e ganhos de capital dos demais investimentos feitos no País, desde que sejam tributados pelo IRPF por alíquota igual ou superior a 22,5%.
Poderão ser deduzidos do lucro tributável da controladora, direta ou indireta, os prejuízos apurados em balanço, pela própria controlada, a partir da data em que preencher os requisitos previstos na proposta, desde que sejam referentes a períodos a partir de 1º de janeiro de 2024 e anteriores à data da apuração dos lucros.
O texto prevê, ainda, que o ganho de variação cambial em razão da diferença entre o dividendo registrado a receber de lucro tributado e o efetivamente percebido posteriormente não será tributada.
Há também mudanças na redação que regulamenta os “trusts”, que são uma ferramenta contratual sofisticada muito usada no exterior para a organização do patrimônio e da sucessão por famílias de alta renda. Pelo dispositivo, eles passam a ser considerados entidades transparentes, com necessidade de declaração pelos titulares.
Assim como na medida provisória que caducou (MPV 1171/2023), os bens e direitos objeto de “trust” no exterior permanecem sob titularidade do instituidor após sua instituição. Eles passam à titularidade do beneficiário no momento da distribuição pelo “trust” ou do falecimento do instituidor, o que ocorrer primeiro.
Uma novidade no texto, no entanto, é a previsão de que a transmissão ao beneficiário poderá ocorrer em momento anterior caso o instituidor abdique, em caráter irrevogável, do direito sobre parcela do patrimônio em questão ‒ são os chamados “trusts irrevogáveis”, instrumento menos comum mas que passa a contar com referência própria na legislação a ser apreciada pelo Congresso Nacional.
Outra mudança é a definição explícita de que a mudança de titularidade sobre o patrimônio do “trust” será considerada como transmissão a título gratuito pelo instituidor para o beneficiário e constituirá em doação, se ocorrida durante a vida do instituidor, ou em transmissão causa mortis, se decorrente de seu falecimento.
Pelo texto, fica mantido dispositivo que determina que os rendimentos e ganhos de capital relativos aos bens e direitos objeto do “trust” sejam auferidos pelo titular e que sejam submetidos à incidência do IRPF. A nova versão, porém, explicita que, caso o “trust” detenha uma controlada no exterior (“offshore”), ela estará sujeita às mesmas regras de tributação previstas no texto e será considerada como detida diretamente pelo titular.
E diz que instituidor ou o beneficiário deverá requisitar ao “trustee” (entidade responsável pela gestão do “trust”) a disponibilização dos recursos financeiros e das informações necessárias para viabilizar o pagamento do imposto e o cumprimento das demais obrigações tributárias no País.
Além disso, as partes envolvidas terão a obrigação de providenciar, a alteração da escritura de “trust” ou da respectiva carta de desejos, para fazer constar redação que obrigue, de forma irrevogável e irretratável, o atendimento, por parte do “trustee”, das disposições estabelecidas. Para os casos em que o instituidor tenha falecido ou perdido poderes em relação a mudanças no contrato e os beneficiários também não tenham poder de alteração da escritura ou carta de desejos, os beneficiários deverão enviar ao “trustee” comunicação formal a respeito da obrigatoriedade de observância ao disposto na nova legislação e requerer a disponibilização das informações e dos recursos financeiros necessários para cumprimento das novas determinações.
Por fim, o texto incluiu dispositivo que determina a aplicação de todas as novas regras aos demais contratos regidos por lei estrangeira com características similares às do “trust” e que não forem enquadrados como entidades controladas.
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