Acordo entre Mercosul e União Europeia pode viver impasse entre exigências ambientais e compras governamentais
Com negociações concluídas em 2019, ainda durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), e atualmente em fase de revisão, o acordo comercial entre União Europeia e Mercosul tem sido tema recorrente em falas públicas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), além de ter pautado conversas durante o encontro de cúpula entre líderes europeus e de representantes da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), ocorrida em Bruxelas (Bélgica), no início da semana.
Debatida há décadas, a celebração de um acordo comercial abriria um novo paradigma nas relações entre os países que integram os blocos, já que umas das premissas do tratado é a de suprimir gradativamente 90% das tarifas comerciais ao longo de um período de 15 anos. De acordo com especialistas, tal cenário poderia beneficiar setores como o agronegócio brasileiro, que ganharia maior acesso ao mercado consumidor europeu.
Atualmente a União Europeia é o segundo maior parceiro comercial do Mercosul. Pelo lado sul-americano, a relação está focada prioritariamente na comercialização de commodities, enquanto os europeus exportam medicamentos e artigos da cadeia petroquímica, como autopeças e produtos feitos à base de plástico.
No que depender das declarações recentes do líder brasileiro, o acordo deve ser finalizado este ano, ainda que não existam evidências sobre como o lado europeu reagirá à contraproposta sul-americana, que vê a inclusão de novas exigências ambientais apresentadas pelos europeus, como a suspensão de importações de produtos elaborados em área desmatada após dezembro de 2020, como parte de um argumento ancorado sobretudo no protecionismo.
Além de criar uma série de normas com objetivo de flexibilizar o comércio entre os países, no documento são contempladas especificidades como a padronização de medidas sanitárias a serem obedecidas nos processos de trocas comerciais visando a segurança alimentar, e também direitos de propriedade intelectual, compras governamentais e cuidados com o Meio Ambiente.
Segundo estudo divulgado pela Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA) atualmente 15% do que é exportado pelo setor tem como destino os portos dos países da União Europeia. Com o início da vigência do acordo, 39% das linhas tarifárias de produtos agropecuários brasileiros passariam a contar com alíquota zero no bloco europeu já no primeiro ano. Entre os artigos estão filés de tilápias, algumas espécies de camarão, pimenta do reino triturada e óleos produzidos a partir de laranja ou limão.
Alegando observância padrões de segurança alimentar já seguidos para artigos produzidos no continente ou mesmo oriundos de importação, a União Europeia destaca que um dos pontos do acordo é a possibilidade de agir pelo “princípio de precaução”, em que autoridades se colocam no direito de aplicar medidas sanitárias para proteger a saúde pública mesmo que análises científicas não sejam conclusivas em um primeiro momento.
Recentemente, a imprensa francesa tem noticiado que associações de produtores rurais têm feito pressão sobre o presidente Emmanuel Macron e exigem que o mandatário não assine o tratado, que, na opinião da classe, poderia prejudicar a soberania alimentar do país ao eliminar grande parte das tarifas alfandegárias e permitir a entrada de produtos estrangeiros no país.
“Dentro da União Europeia há certa discordância entre os membros, mas o acordo parece ser uma prioridade diante do conflito que ocorre na Ucrânia, e também se analisarmos a competição do bloco com a China e Estados Unidos”, pontuou o professor de Relações Internacionais do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), Demetrius Pereira.
“A resistência maior parece ser da França, por causa da competição dos produtos agrícolas do Mercosul”, acrescentou.
Com a assinatura do tratado, também é esperada uma abertura do mercado brasileiro a artigos fabricados na Europa. Entre os artigos que teriam as tarifas aduaneiras zeradas também estão automóveis, autopeças, máquinas, calçados produzidos a partir de couro e medicamentos, além de gêneros alimentícios como vinho, peixes em conserva, bebidas destiladas e biscoitos.
Enquanto o bloco europeu faz acenos com novas exigências ambientais, o governante brasileiro, em posição que já havia sido defendida publicamente pela Argentina, quando Alberto Fernández exerceu a presidência temporária do Mercosul, tem chamado atenção para a necessidade de proteger fornecedores nacionais em processos licitatórios, oferecendo uma blindagem contra um eventual avanço de empresas estrangeiras no setor.
De acordo com o jornal O Globo, na lista de prioridades de Lula em texto enviado aos parceiros do Mercosul antes de serem formalizadas ao bloco europeu estarão mecanismos que obriguem empresas europeias vencedoras de processos licitatórios a oferecer algum tipo de contrapartida, como transferência de tecnologia. Também será defendida uma margem de disputa de 20% para empresas nacionais, ou seja, organizações brasileiras sairiam vencedoras de processos licitatórios mesmo que o preço apresentado seja até 20% mais alto que o oferecido pelos europeus.
Um mês atrás, durante visita à França, Lula fez duras críticas ao termo adicional (“side letter”) encaminhado pelo bloco europeu ao processo de acordo. Na ocasião, o chefe de Estado brasileiro classificou as posições da UE como “ameaça” e disse que não poderia ser aceita nos termos colocados. “Estou doido para fazer um acordo com a União Europeia. [Mas] Não é possível a carta adicional feita pela União Europeia. Vamos mandar resposta, mas é preciso que comecemos a discutir”, disse.
Analistas enxergam as exigências de Lula como uma forma de ratificar as prioridades do Mercosul e estabelecer uma moeda de troca frente a um aumento das exigências ambientais dos negociadores europeus. No entanto, há receio de que tal posição possa refletir na criação de um impasse, o que poderia fazer com que novas negociações fossem abertas, atrasando a assinatura do tratado, ou mesmo inviabilizando o acordo.
Fontes ouvidas por esta reportagem apontam que ao fato de ter havido uma menção singela de que União Europeia e Mercosul têm trabalhado em parceria pelo acordo, sem citar perspectivas concretas pela conclusão do acordo, no documento final assinado pelos participantes da reunião de cúpula UE-Celac realizada em Bruxelas, pode ser um indicativo de que um desfecho que agrade ambas as partes segue distante.
“O aumento das exigências por parte da União Europeia decorre de fatos protecionistas, oriundos da necessidade de manutenção de empregos dos europeus e manutenção de um crescimento econômico já decrescente em decorrência da Guerra na Ucrânia”, analisou a economista Daniela Cardoso, mestre em Ciências Sociais e professora da pós-graduação em Política e Relações Internacionais da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), que tem acompanhado as tratativas sobre o acordo.
“Provavelmente o acordo será assinado com o enfraquecimento da guerra na Ucrânia, e após a eleição presidencial francesa para menor desgaste político do atual presidente, mas a assinatura ocorrerá, pois a Europa já percebeu o aprofundamento das relações entre Brasil e China, principalmente através de parceria na produção de vacinas – área de forte atuação europeia”, projetou.
Agronegócio vê “sinais confusos”
Ainda que identifique a existência de “determinadas posições mercadológicas de maneira genérica” nos termos defendidos pelos europeus ao mesmo tempo em que o governo brasileiro tem emitido “sinais confusos” para a conclusão do acordo, o vice-presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), Ingo Pögler, reconhece a importância de os dirigentes dos blocos chegarem a um consenso para facilitar o acesso a mercados.
“Nós reconhecemos a importância do acordo para os dois lados. Mesmo não sendo o ideal, ele dá esperança para possibilidades futuras. É importante ter acesso ao mercado da União Europeia, que hoje se encontra fechado para muitos produtos”, afirmou.
Também procuradas pela reportagem, fontes da Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), que representa frigoríficos de carne suína e também avicultores, informaram que são favoráveis à assinatura do acordo, pela perspectiva de aumento nas exportações a países europeus.
A Secretaria de Comércio Exterior, órgão subordinado ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), que também defende o acordo em uma publicação na sua página na internet, estima que a assinatura do tratado poderá trazer um incremento do PIB brasileiro de até US$ 125 bilhões em 15 anos, além de projetar um aumento de US$ 113 bilhões em investimentos estrangeiros no país no período.
No início de junho, com a visita da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, a Brasília, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) divulgou um comunicado assinado de maneira conjunta com a Confederação das Empresas Europeias (BusinessEurope) ratificando apoio ao acordo. O documento destaca que o comércio bilateral entre o bloco europeu e o Brasil atingiu um valor recorde de quase 90,5 bilhões de euros em 2022.
“Ao estabelecer uma das maiores áreas de livre comércio do mundo que cobriria quase um quarto da economia global e 31% das exportações mundiais de bens, o acordo proporcionará benefícios concretos para ambos os blocos, inclusive no sentido de se atingir a neutralidade climática”, diz trecho do documento.
Ipea recomenda cautela
Na contramão desses setores, uma nota divulgada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) no início deste mês, feita a partir de simulações baseadas em parâmetros de comércio tradicionais, recomenda cautela ao entender que os ganhos para a economia brasileira não serão significativos. Ligado ao Ministério do Planejamento e Orçamento, o órgão vê futuros prejuízos ao processo de reindustrialização do país, uma das bandeiras do governo Lula, que também foi uma das plataformas do petista durante a campanha presidencial.
“Enquanto as economias latino-americanas possuem vantagens comparativas em agricultura e mineração, o bloco de economias europeias tem vantagens comparativas em bens manufaturados. É ponto pacífico que o acordo de livre-comércio entre os blocos irá acentuar este padrão de especialização das economias. O ganho potencial para as economias latino-americanas está no maior acesso aos mercados europeus para a exportação de suas commodities e no barateamento de insumos e bens de consumo industriais. A perda, por sua vez, está no aprofundamento do processo de desindustrialização de suas economias”, comparou.
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