Afroturismo: estudante cria projeto que traça rotas da história negra na Paraíba
Desenvolvido por aluna da UFPB, a iniciativa pretende valorizar cultura e religião, além de discutir racismo estrutural. Uma das rotas fica na cidade de Alhandra, símbolo da Jurema Sagrada. Josimar Diniz / TV Cabo Branco Memória é sinônimo de conservação. Na perspectiva histórica os efeitos são múltiplos, a memória serve para evitar a repetição de grandes erros, com base no passado, e para reconhecer a importância de vários povos. Foi nesse viés que surgiu um projeto de valorização da memória negra na Paraíba, através do mapeamento de rotas turísticas que mostram passos anteriores desta população. O afroturismo é o objeto de pesquisa de Bárbara Tenório, a estudante está no processo de conclusão do curso de turismo na Universidade Federal da Paraíba. Durante os estudos ela descobriu o trabalho de retomada de rotas negras em outros estados e buscou algo semelhante na Paraíba, mas não encontrou. Foi quando decidiu implementar a iniciativa. “É um projeto importante para que a gente possa construir a identidade brasileira trazendo todas as histórias. Muitas vezes a contribuição da população negra é apagada, as rotas mostram a diversidade de culturas, religiões e memórias espalhadas pelo estado”, relata Bárbara. Bárbara Tenório é estudante de turismo na UFPB e criou o projeto Sankrota. Arquivo pessoal O resgate de raízes perdidas ou negligenciadas opera um papel importante na valorização da autoestima coletiva da comunidade negra, e é um dos focos do afroturismo. O campo age tanto como estudo quanto modelo de negócios, onde as vivências negras são o centro das descobertas que esse tipo de turismo pode proporcionar. As rotas mapeadas, a exemplo das que integram o Trabalho de Conclusão de Curso de Bárbara, têm passado e contexto distintos. Em João Pessoa, a estudante mapeou o Ponto de Cem Réis, no Centro. No local onde fica, hoje, o viaduto Damásio Franca, em 1697 foi construído um dos poucos locais em que pessoas negras pudessem professar fé dentro das leis da época: a Igreja do Rosário dos Homens Pretos. Viaduto Damásio Franca, no Centro de João Pessoa. Magno Oliveira / Tv Cabo Branco A igreja foi demolida na década de 1920, a construção do viaduto foi tida como um marco do progresso da cidade. A demolição sem que se fizesse menção ao que se tinha antes no local foi, para Bárbara, o apagamento de muita resistência. “Além da igreja em si existia a Irmandade dos Homens Pretos, um grupo que se fortalecia pra combater injustiças. Eles se reuniam no centro da praça e havia manifestações tradicionais como maracatu em datas importantes. Era um símbolo negro na cidade”, explica a pesquisadora. Ponto de Cem Réis, Centro de João Pessoa, antes da construção do viaduto. Arquivo pesquisa A poucos metros do Ponto de Cem Réis, uma outra praça integra a rota afroturística, a Barão do Rio Branco. O destino é conhecido atualmente por abrigar eventos de samba e cultura popular, onde parte da população negra pessoense se diverte ao som de grandes nomes da música preta do país. Apelidada de Praça do Chorinho por causa da música, o chão que hoje abriga riso já foi espaço de muito pranto. Numa das extremidades da praça, onde fica o busto do Barão do Rio Branco, esteve, até o século 17, um pelourinho. Lá aconteciam os açoites e enforcamentos de pessoas negras escravizadas. Praça Rio Branco, Centro de João Pessoa. Na imagem o busto, local onde ficava o pelourinho. Clara Rezende O ponto também era conhecido por ser escolhido por escravistas para compra e venda das pessoas que, na época, eram tidas como mercadoria. Também na Rio Branco foi construída a Cadeia Pública, que de acordo com a pesquisadora Bárbara Tenório é outro reflexo das chagas do povo preto paraibano. “Depois que a escravidão foi abolida não teve política de reparação, pelo contrário. Algumas leis como a da vadiagem, proibia negros de circularem pela cidade caso não tivessem trabalho formal. Medidas assim fizeram com que a Cadeia Pública fosse um local para trancafiar pretos”, explica. Num reflexo histórico as prisões seguem ainda abarrotadas de corpos negros. Conforme dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021, 67,5% das pessoas encarceradas no Brasil são negras. Números como esse e o contexto trazido à tona pela pesquisa afroturística remontam ao conceito de racismo estrutural. O passado escravagista e os índices que envolvem as condições de vida da população negra atualmente deixam nítidos que a hierarquia racial que oprime uns e privilegia outros está na base da sociedade. O filósofo e escritor Silvio Almeida defende a tese em seu livro: “Racismo é dominação […] A manutenção deste poder adquirido depende da capacidade do grupo dominante de institucionalizar seus interesses, impondo a sociedade regras, padrões de condutas e modos de racionalidade que tornem “normal” o seu domínio”, afirma Silvio na obra ‘O que é Racismo Estrutural?’. O projeto de Bárbara Tenório quebra, assim, essa normalidade. A estudante retoma as memórias de potência e de dor do povo negro com o objetivo de atribuir sentido ao que se vê hoje, ela acredita que essa também é uma estratégia antirracista. Projeto traça rotas da história negra na Paraíba Rotas de fé: a resistência da Jurema Sagrada A pesquisa é norteada por um vasto arcabouço histórico, para isso a jovem conta com o suporte de Danilo Santos, historiador e orientador do seu Trabalho de Conclusão de Curso. O professor é integrante do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas da UFPB (Neabi), e ao falar do projeto acredita que uma das principais contribuições é a possibilidade de torná-lo um modelo de negócio. “Nós trabalhamos na perspectiva acadêmica e técnica, o afroturismo é pouco abordado na Paraíba”, destaca o professor. O modelo de negócio em curso pretende levar as pessoas interessadas às rotas, permitindo que elas conheçam e vivenciem, a depender do contexto, o que a história preta deixou em cada canto. Danilo Santos defende que há dois pontos relevantes nesta iniciativa empreendedora: a valorização e conservação da memória, além do turismo sustentável que Bárbara pode desenvolver em parceria com os locais. Estes aspectos estão presentes em uma das rotas da Jurema Sagrada, traçada por Bárbara e Danilo. A 47 quilômetros da capital João Pessoa está o Templo Mestra Jandercilha, no coração do município de Alhandra. O lugar sagrado teve sua estrutura física construída em 1970, mas os cultos vêm de muito antes. Templo Mestra Jandercilha, em Alhandra, Região Metropolitana de João Pessoa. Josimar Diniz / Tv Cabo Branco Quando o professor Danilo Santos divide em valorização e possibilidade de turismo sustentável ele acredita na rota da Jurema Sagrada como melhor exemplo, visto que o afroturismo fortaleceria a identidade religiosa que ainda é desconhecida por muitos, e levaria à família responsável pelo templo uma economia livre de exploração, com base no compartilhamento de histórias. “O afroturismo proporciona vivências que o turismo tradicional, por causa do racismo estrutural, não soube aproveitar. A Jurema Sagrada aqui de Alhandra está na região metropolitana de João Pessoa, um dos lugares mais turísticos, e pouco se conhece”, relata o professor. A família juremeira de Alhandra hoje tem como tronco mãe e filho. Lucas Sousa é mestre juremeiro e toca com orgulho o templo construído por sua avó materna, Jardecilha. Jurema é a árvore sagrada que dá nome a uma religião não apenas brasileira, mas nordestina, de origem indígena. Apesar do berço pertencer aos povos originários, a Jurema recebeu forte influência dos povos negros que vieram ao Brasil escravizados. A religião tem a natureza como centro de tudo, os juremeiros têm como tradição a ingestão de beberagens e o fumo de ervas retiradas de várias árvores consideradas sagradas. São as forças dos ecossistemas e dos antepassados que conduzem quem protege a crença de toda intolerância religiosa. Lucas Sousa, mestre juremeiro e responsável pelo Tempo Mestra Jandercilha. Josimar Diniz / Tv Cabo Branco “Essa árvore nos liga aos nossos ancestrais. Manter essa tradição vai além do que é fé, é respeito aos nossos ancestrais. Antigamente o culto era proibido, através de privação de liberdade e até atentados contra a vida. Hoje quem pratica a Jurema leva a memória dos ancestrais. É a história dos meus antepassados neste templo”, ressalta Lucas. A dança, a festa, as vestes. Recortes de uma memória secular que mostram a resistência de vários povos. Manter a Jurema viva e segura é o trabalho de vida de Nina Paulino, mãe do mestre Lucas. Ela herdou não só a fé, mas o compromisso da mãe Jandercilha, de levar a potência da população negra a quem quiser entender mais sobre. Nina Paulino é juremeira e carrega o legado da mãe, construtora do templo. Josimar Diniz / Tv Cabo Branco “Aqui é um hospital, recebemos todos. Nossa intenção é cuidar das pessoas e manter nossas origens. Minha mãe começou com 5 anos de idade, a importância que tinha pra ela tem muito mais pra gente. A Jurema é vida, é minha mãe. Como eu queria que as pessoas respeitassem a Jurema”, desabafa Nina. No retorno a João Pessoa, às margens da rodovia, a história da Jurema em Alhandra ainda guarda muito para contar. Conhecida como Capelinha de Maria do Acais, uma pequena igreja é o símbolo da resistência à intolerância religiosa. A oralidade dos ancestrais juremeiros passou de geração em geração que a capela foi construída por Maria do Acais, depois de ser impedida por um padre de cultuar a Jurema dentro de uma igreja católica tradicional. Ela defendeu o sincretismo presente na fé, mas mandou suficiente. Então decidiu construir um lugar seguro para abrigar a multiplicidade dos cultos. A capelinha é apontada pelo professor Danilo como uma continuidade da rota da Jurema Sagrada, uma demonstração de que turismo é sobre preservação cultural. “Meu trabalho é de resgate, a Paraíba é um fragmento do afroturismo no Brasil. São as nossas raízes, é uma questão sociohistórica, mas também de saúde. Falar da nossa memória é proporcionar autoestima porque descobrimos nosso valor na construção do país”, conclui a estudante Bárbara Tenório.