Casos de feminicídios constam como homicídios simples na consulta pública do TJPB, aponta pesquisa


Estudo analisou seis casos interpretados como feminicídios, mas que constam como “homicídio simples” na consulta pública do Tribunal de Justiça da Paraíba. Segundo a pesquisadora, existe uma confusão na hora de organizar esses dados e as nomenclaturas. Elza Fiuza/Arquivo Agência Brasil Alguns casos de feminicídios constam como “homicídios simples” na consulta pública do Tribunal de Justiça da Paraíba, afirma pesquisa da área de ciências jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). O estudo, realizado pela advogada Jaíne Araújo, analisou seis crimes ocorridos no estado e identificou, através do corpo do processo, que se tratam de feminicídios, embora estejam classificados como “homicídios simples” na consulta pública do TJPB. Ela analisou os seis assassinatos de mulheres a partir do momento das investigações até o momento da pronúncia, fase anterior ao tribunal do júri. Segundo a pesquisadora, esse recorte é justificado pelo fato que a maioria dos casos levam anos para serem julgados. Dessa forma, a classificação é fundamental para a coleta, registro e acompanhamento de feminicídios no estado anualmente. Dito de outra forma, os casos ainda não julgados são identificados a partir da classificação analisada por Jaíne Araújo. Esse problema pode induzir ao erro pesquisadores e órgãos que trabalham contra as violências de gênero no estado, indica a pesquisa. Por isso, aponta para a importância da sistematização adequada dos dados sobre os casos de violência extrema contra as mulheres. “Isso comprova que é metodologicamente arriscado fazer uma pesquisa apenas com dados eletrônicos obtidos nos sistemas informáticos de órgãos públicos. É necessário consultar o corpo dos processos e verificar, em todas as páginas dos autos, se trata-se de um caso de feminicídio”, diz a pesquisa. No universo de casos, a pesquisadora optou por investigar os homicídios simples, pois suspeitava que pudesse haver casos de feminicídios subnotificados. O que ela descobriu, ao avaliar os processos, é que em alguns casos até citam a qualificadora, mas na hora de expô-los publicamente na consulta pública foram cadastrados como homicídios simples. “Juridicamente, nas peças processuais, a qualificadora de feminicídio está presente, mas na consulta pública processual e em algumas partes do processo, o instrumento jurídico supracitado não consta”, diz Jaíne Araújo. Segundo a pesquisadora, existe uma confusão na hora de organizar esses dados e as nomenclaturas. “Tirei como saldo que, na verdade, esses seis casos são feminicídios, mas na consulta simples a qualificadora não consta. Falta um rigor na hora de observar a utilização da qualificadora”, diz a advogada. "Existe uma perturbação processual, indicando que falta um rigor na hora de expor isso corretamente. Quem utilizar a consulta pública como fonte de pesquisa, vai ser induzido ao erro." A advogada chama esse problema de “tumulto procesual”. Para ela, “esse tumulto processual atrapalha a coleta de dados e dificulta a criação de políticas públicas de combate às violências de gênero, pois é preciso saber, com exatidão, quantas, onde e como as mulheres estão morrendo por conta da desigualdade de gênero”, diz a pesquisa. O trabalho passou pelo aval do Comitê de Ética da UFPB. Trata-se da dissertação de mestrado da pesquisadora, intitulada: “Quem o direito protege? Uma análise interseccional sobre a tipificação de casos de feminicídios no Estado da Paraíba”. No texto, ela preservou o nome das vítimas, mas manteve os números dos processos, os nomes das localidades e as datas de instauração das ações penais, uma vez que o processo penal é, em regra, público e passível de conhecimento de todos. Jaíne Araújo atualmente é doutoranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB. Arquivo pessoal O objetivo do estudo é alertar para a importância da sistematização correta dos dados, o que pode acarretar na fundamentação da criação de políticas de combate à violência contra as mulheres. “Qual a problemática disso? Acaba ocultando os dados. Na medida que isso acontece, não se consegue identificar quantas mulheres estão morrendo por conta do feminicídio, ou onde estão morrendo com maior frequência. São elementos que precisam ser analisados”, diz Jaíne. Subnotificação A dissertação da advogada parte de uma investigação anterior, no seu Trabalho de Conclusão de Curso, onde identificou a subnotificação do caso Vivianny Crisley, assassinada com golpes de chave de fenda na cabeça e que, em seguida, teve o corpo queimado em uma mata de Bayeux, na Grande João Pessoa, no ano de 2016. Vivianny Crisley estava desaparecida após festa em boate de João Pessoa, Paraíba Reprodução/TV Cabo Branco Na pesquisa, intitulada “Os tropeços do judiciário paraibano: uma análise sobre a não tipificação do caso Vivianny Crisley com a qualificadora do feminicídio”, Jaíne entrevistou os agentes da lei envolvidos no caso, como delegado, promotores de Justiça, advogadas de acusação e juíza. A pesquisadora discorda do posicionamento do representante do Ministério Público e da juíza no caso, que não teve a qualificadora de feminicídio. Já as advogadas de acusação afirmam que a qualificadora deveria ter sido atribuída. Com base no processo e nessas entrevistas, a advogada concluiu que nenhum argumento contrário ao fato de que foi um feminicídio se sustentou, “houve uma subnotificação do caso”. “Ela pedia a todo momento para ir embora, chegou a pedir para ser deixada na BR. Em troca, ouviu de um dos seus assassinos: ‘boy, bora matar essa nega, ela fala demais'", resgata a pesquisadora, que acredita que os golpes na cabeça foram muito simbólicos. “Mulher não pode pensar, nesse caso, não pode exercer o direito dela de falar”. Foram cinco perfurações no crânio de Vivianny Crisley. Em sua pesquisa, Jaíne desenvolve sete argumentos do por quê o caso se trata de um feminicídio, ao invés de homicídio qualificado, conforme foi julgado. Para isso, ela se baseia nas Diretrizes Nacionais para investigar casos de feminicídios, um documento do governo brasileiro. Dentre os argumentos, está o fato que um dos assassinos se aproveitou do envolvimento íntimo que teve com ela na noite em que foi morta. Além disso, a pesquisadora também destaca o terror psicológico que Vivianny viveu, mesmo tendo pedido para ir embora diversas vezes, fator que denota a posse sobre o corpo da vítima por parte dos agressores. “Existem relatos no processo que eles continuaram dando paulados no corpo dela mesmo após deixá-la na mata, o que revela a vontade de punição por ‘desobedecer’ a esses homens”, diz Jaíne, que entende que o caso se enquadra no segundo inciso da Lei de feminicídio: ódio e menosprezo contra a mulher. "O próprio fato dela ser mulher desacompanhada de um homem na noite da festa e, principalmente, no momento de ir embora, encontrar-se sozinha, foram elementos suficientes para que ela fosse um corpo a ser descartado." "Não podemos esquecer que o patriarcado valida o poder de morte, violência física e emocional contra as mulheres. Assim, trata-se de uma equação simples, de um lado estão os homens, que exercem a dominação masculina quase sem nenhuma restrição, e do outro estão as mulheres, que sofrem os efeitos desse poder”, diz Jaíne Araújo em seu estudo. “Quando se fala em subnotificação, significa que devia ter usado outra qualificadora. É importante saber onde mulheres estão morrendo para criar estratégias e solucionar esses problemas. O apagamento desses dados torna inviável fazer políticas públicas eficazes”. O g1 procurou o Ministério Público Estadual (MPPB) para questionar sobre a não atribuição da qualificadora. O promotor de Justiça Onéssimo Cruz, que fez a denúncia e a instrução do processo do caso Viviany Crisley, explicou que o crime realmente foi praticado com requintes de crueldade, mas não foi caracterizado como feminicídio por causa da forma como foi executado. Ainda segundo o promotor, não houve violência doméstica nem ataque à integridade sexual da vítima. No ranking nacional, a Paraíba divide com Alagoas a 16º posição no índice de maiores taxas de feminicídios no país. Getty Images/ South_agency Ranking de feminicídios No ranking nacional, a Paraíba divide com Alagoas a 16º posição no índice de maiores taxas de feminicídios no país. Na região Nordeste, também divide com Alagoas o 3º lugar do estado com maior índice de feminicídios. Os dados são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021. Também segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2021, a Paraíba apresentou decréscimo de -14,3% no número de casos em relação aos anos anteriores. Se em 2019 e 2020 manteve a taxa de 1,7, em 2021 esse número baixou para 1,4. A pesquisadora, no entanto, reflete se houve, de fato, redução do índice ou aumento da subnotificação. Por isso, considera que os Crimes Letais Violentos Intencionais (CVLI) também devem ser observados. Ou seja, os assassinatos de mulheres em geral (confira tabela abaixo). Assassinatos de mulheres na Paraíba Os dados são da Secretaria do Estado da Segurança e da Defesa Social (SESDS-PB). Dos 31 casos investigados como feminicídios, ocorridos em 2021, 11 ocorreram na região intermediária de João Pessoa, 12 na região intermediária de Campina Grande, 6 na região intermediária de Patos e 3 na região intermediária de Sousa/Cajazeiras “Esses dados escancaram uma realidade muito triste da Paraíba”, afirma Jaíne Araújo. “Mostram o quanto a Paraíba ainda precisa evoluir nesse sentido, no que diz respeito à valorização de igualdade de gênero e a uma série de outras questões que concernem ao combate do feminicídio. O que diz o Tribunal de Justiça O g1 procurou o Tribunal de Justiça da Paraíba para entender por que o problema acontece. A juíza Anna Carla, da Coordenadoria da Mulher, explicou que a questão do assunto é incluída por cada unidade judiciária. "Se não havia o assunto cadastrado no processo que indicasse a situação do feminicídio, caberia à vara incluir no processo, fazendo a retificação da autuação", diz a juíza Anna Carla, que informou que não é possível identificar esse 'erro' automaticamente sem fazer uma análise processo a processo. O juiz Ramalho Júnior, da Coordenadoria de violência contra a mulher, explicou que os processos criminais sempre foram físicos, apenas a partir de 2020 passaram a fazer parte do acervo virtual do TJ com a digitalização. Em 2015, quando a lei de feminicídio entrou em vigor, foi que estes processos passaram a ser distribuídos como feminicídio. “Nós, do poder judiciário, ficamos reféns de uma classificação inicial feita por uma autoridade policial, já que é ela quem faz a distribuição desse processo. Nós ficamos na expectativa da oferta da denúncia por parte do Ministério Público para verificar se é ou não a classificação da qualificadora de feminicídio”. “Quando a gente recebe a denúncia, podemos fazer essa eventual alteração de classe. Então nesses casos de feminicídios, eu só poderia explicar o que aconteceu, se tivesse acesso ao processo, para que a gente verifique se a classificação inicial feita pela autoridade inicial já foi feita com base em homicídio simples, se o MP entendeu que era só homicídio simples e se o juiz, ao receber a denúncia, tratou como homicídio simples ou não”, diz o juiz Ramalho Júnior. Vídeos mais assistidos do g1 Paraíba
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