Desafios no dia a dia da profissão motoboy: ‘a gente entrega a comida, mas não tem acesso a ela’
Neste Dia do Trabalho, profissionais e familiares compartilham vivências, ao tempo em que especialista em leis trabalhistas explica quais são os direitos da categoria. Motoboy Reprodução/GloboNews “Vou trabalhar só até esse final de semana” é a frase que ficou guardada na memória do motorista de aplicativo, Jailson Sousa, de 58 anos, pai do motoboy Kelton Marques, vítima de um grave acidente em João Pessoa. Poucas horas antes de morrer, o entregador disse ao pai que deixaria a função que era exercida para complementar a renda da família. Ao telefone, fazia planos para abrir um pet shop e, assim, deixar de correr riscos nas ruas que percorria sobre duas rodas. Compartilhe esta notícia pelo Whatsapp Compartilhe esta notícia pelo Telegram Depois de concluir as entregas do dia, enquanto voltava para casa ainda na madrugada, o paraibano foi atingido por um carro conduzido por um motorista embriagado e que dirigia em alta velocidade, a 163 km/h. Quando uma equipe do Serviço de Atendimento Médico de Urgência (Samu) chegou ao local, ele já estava sem vida. Kelton partiu cedo, mas deixou um legado de sonhos, determinação e trabalho duro. “Kelton era um sonhador, minha filha. Ele assinou a carteira dele pela primeira vez com 14 anos de idade, como menor aprendiz até ficar de maior. Passou mais de três anos em outra empresa”, contou Jailson, suspirando, tomado pela emoção de lembrar do que planos do filho para a vida que parecia ser um longo caminho pela frente. Conforme o pai, o esforço de Kelton tinha um propósito: proporcionar o melhor para as filhas dele. Quando ele se foi, as meninas ficaram com 10 e 2 anos. Atualmente, elas têm 11 e 3 anos de idade. kelton e as duas filhas Jailson Sousa/Arquivo pessoal Jailson começou a trabalhar no trânsito no ano de 1982. Agora, ele é motorista de aplicativo. Com uma experiência de décadas, ele conhece bem os perigos que as ruas oferecem. “Sempre tive preocupação [com o filho]. Piloto moto desde os meus 18 anos. Já caí muitas vezes e vejo acidentes. A vida do motoboy, você anda com ela nas mãos. É muito perigoso”, destacou. Sabendo dessa preocupação, Kelton sempre falava ao pai da prudência que adotava enquanto trabalhava pilotando. Ele não era do tipo que avançava sinais ou passava por cima de calçadas para ganhar tempo. “Ele respeitou a sinalização de trânsito. Mas, infelizmente, outras pessoas não respeitam”, lamentou. Com a propriedade de quem conhece a dor de perder um filho, Jailson acredita que, de um modo geral, os motoristas precisam de mais consciência no que diz respeito ao cumprimento das leis de trânsito. “O acidente acontece pela imprudência e pela negligência, principalmente por causa da bebida. Quem ingerir bebida alcoólica não tem condição de dirigir. Coloca em risco a própria vida e de outras pessoas”, reforçou. Após quase dois anos, a família de Kelton também lamenta o fato das duas filhas dele não terem acesso a nenhum tipo de assistência. Segundo o pai, ele trabalhava com prestação de serviço usando um Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ) e não no regime celetista. LEIA TAMBÉM: PORTEIRO DE PRAIA NATURISTA: 'depois de 5 minutos ninguém lembra que tá sem roupa' MAQUIADOR DE MORTOS: entenda a função e veja quais situações causam desconforto MACONHA PARA FINS MEDICINAIS: farmacêutico quebra preconceitos e diz que substância pode salvar vidas Além disso, ele também contou que o valor referente à moto que o entregador pilotava, veículo que ficou totalmente destruído com o impacto da batida, também não foi restituído. O empresário Ruan Ferreira de Oliveira, mais conhecido como Ruan Macário, acusado de matar Kelton, vai a júri popular por homicídio qualificado com dolo eventual, que é quando se assume o risco de matar. No entanto, ainda não há uma data definida para que o julgamento aconteça. Com o impacto, o motoboy Kelton Marques morreu no local, e a moto ficou totalmente destruída. Reprodução/TV Cabo Branco Ruan Macário está preso desde o dia 29 de julho de 2022, quando se entregou à polícia após passar 10 meses foragido. Em novembro, também no ano passado, ele assumiu a autoria do crime. O réu afirmou ter feito uso de medicamentos para ansiedade e depressão na época do crime, além de ter ingerido bebidas alcoólicas, o que teria causado um surto, que o levou a dirigir em alta velocidade. Agora, a família de Kelton espera pela condenação de Ruan e luta pelos direitos das filhas do motoboy, mesmo sabendo que a maior perda não será reparada. “O meu filho que morreu, tá preso debaixo da terra, é uma prisão que ele não vai deixar, eu nunca mais vou ver ele”, concluiu. ‘Só escutei a zoada da batida, a moto sendo arrastada’ Luan Sampaio Borborema, de 25 anos, se formou no curso de geografia em 2022. Até o momento, não conseguiu emprego na área. Atualmente, trabalhava como leiturista para sustentar a família. “Recém graduado não acha espaço no mercado do trabalho e se submete a isso. Vários motoristas têm uma graduação, mas por vários fatores não atuam na área”, desabafou. Em busca de uma renda extra, ele também se cadastrou em um aplicativo, mas para transportar passageiros. Assumiu, portanto, a função de mototaxista, exercida sempre entre o fim da tarde e a noite. Com cerca de seis no exercício da atividade, ele foi atropelado, perseguido e agredido. O motorista do veículo, que teve o celular roubado em um bar minutos antes, o confundiu com o assaltante. Luan Sampaio, motoboy perseguido e atropelado por advogado em Campina Grande Reprodução/TV Paraíba “Na sexta-feira, saí de 18h. Com o passar da hora, apareceu essa corrida. Quando cheguei ao local, informei à passageira que estava aguardando ela. Ela disse que já estava descendo”, recordou. Era a primeira vez Luan atendia a cliente, já que os passageiros são selecionados de forma aleatória pelo app. Mas ele já havia ido ao mesmo prédio atender a outras pessoas em dias e horários diferentes. “Fiquei em cima da moto esperando ela descer. Eu avistei um carro entrando na contramão, mas achei que seria alguém que ia estacionar. Só escutei a zoada da batida, a moto sendo arrastada. Não sei de qual maneira eu me levantei”, explicou. Como o impacto da batida, a motocicleta de Luan foi arremessada a metros de distância. Ele, no entanto, fez o movimento contrário e caiu para frente, movimento que provavelmente salvou a vida dele. “Eu tava querendo entender o tempo todo o porquê daquilo ter acontecido, sabe? Fiquei com medo. Graças a Deus não tive nada de grave. Apenas alguns arranhões e machucados. Mas estou aqui contando a história por um milagre, uma providência de Deus”, ressaltou. Vídeos, gravados por testemunhas que estavam no local, mostram que depois de bater em Luan, o motorista do carro, o advogado Pedro Mário Freitas Alves Fernandes, desceu do automóvel e já perguntou pelo celular dele que havia sido roubado. “Eu dizia que o único celular que eu tinha era o meu”, reforçou. Momento em que o advogado atropela o motoboy acreditando que era um dos suspeitos de assalto em bar, em Campina Grande Reprodução/TV Paraíba Depois de ser atingido, a Polícia Militar foi acionada. Os policiais orientaram Luan sobre o que deveria ser feito a partir dali e ele foi, acompanhado por amigos, até a Central de Polícia Civil formalizar a denúncia. A moto ficou bastante danificada. Mas em acordo feito entre Luan e o acusado, o advogado Pedro Mário, o prejuízo com a moto foi pago. Já a Justiça da Paraíba (TJPB) acatou um pedido de habeas corpus da defesa do Pedro Mário, preso no início de março, e determinou a soltura dele no fim de abril. Agora, ele deve seguir uma série de medidas cautelares, como ficar proibido de frequentar bares e festas, por exemplo. Em uma entrevista concedida na época, Luan disse que não se sentia mais seguro e confortável para voltar às ruas. E foi exatamente isso que aconteceu. Ele não voltou. Abriu mão do pouco dinheiro que ganhava a mais para preservar a própria vida. “Quando a gente está na rua, está propenso a tudo. Hoje estou com minha família, estou contando meu testemunho”, finalizou. ‘Nós carregamos a comida, mas não temos acesso a ela’ “Nós carregamos a comida, mas não temos acesso à ela”. Foi com essa frase que Ernani Bandeira, 50 anos, recordou um das situações mais chocantes que presenciou ao longo de 20 anos como motoboy. Atualmente, ele é presidente do Sindicato dos Trabalhadores com Moto da Região Metropolitana de João Pessoa (Sindmotos-JP). No auge da pandemia, entre uma entrega e outra, enquanto esperava a chuva passar, Ernani encontrou um colega de profissão. Por volta das 19h, esse outro motoboy ainda não havia almoçado. “O colega estava muito aflito porque estava rodando dentro do aplicativo. Ele tinja que fazer a entrega, tinha que bater a meta. Nós carregamos a comida, mas não temos acesso a ela”, se queixou. Membros do Sindmotos-JP Sindmotos-JP/Divulgação Ainda parados, esperando a chuva dar uma trégua, o representante sindical ouviu do colega que ou ele guardava dinheiro para a gasolina que possibilitaria continuar as entregas no dia seguinte e levava dinheiro pra casa para fazer as compras ou parava pra comer. “Dei dinheiro e mandei ele parar na lanchonete mais próxima. Disse ‘vá se alimentar, você precisa raciocinar enquanto pilota’. Isso mexe com nosso psicológico e nosso dia a dia no trânsito”, lembrou o representante sindical. O que Ernani presenciou comprova a tese que ele e outras membros da categoria sustentam: o trabalho está precarizado. O Sindmotos-JP abrange a Região Metropolitana de João Pessoa, especialmente a própria capital paraibana e os municípios, Bayeux, Santa Rita, Cabedelo, Lucena, Alhandra, Mamanguape e Conde. Ao todo, 870 profissionais estão sindicalizados, sendo 84% motoboys e 16% motogirls. Todos eles trabalham em regime celetista. Por outro lado, conforme a entidade, há a estimativa que existam 2.900 profissionais que trabalhem na informalidade nessa mesma região, divididos em várias categorias, a exemplo de motoboys, motofretistas e mototaxistas. Motoboy: trabalha com moto levando mercadorias de pequeno porte. Motofrete: geralmente transporta cargas, com baú nas costas. Mototaxistas: transporta passageiros. Conforme Ernani, os entregadores se encaixam tanto na função de motoboy como de motofretista. Ainda de acordo com o sindicalista, durante a pandemia de Covid-19, a categoria “absorveu várias profissões como vigilante, pedreiro, segurança, e porteiro”, já que os profissionais dessas precisaram parar ou perderam os trabalhos por conta da necessidade de isolamento, enquanto medida de prevenção à doença. Com a absorção de novos profissionais, a precarização do trabalho se tornou mais evidente. “O trabalhador sai perdendo com os aplicativos e cooperativas. Não existe fiscalização, registro de carteira assinada, mas sim motos e profissionais desqualificados”. Conforme o sindicato, como os apps oferecem serviços com custos menores, as empresas acabam demitindo profissionais, que são substituídos pelos prestadores de serviços. “A qualidade do serviço é ruim, a concorrência é desleal, falta segurança”, denunciou. Por causa disso, a categoria defende uma regulamentação mais efetiva em níveis nacional e municipal. Diante desse contexto de insatisfação, a entidade atua com ações de apoio e conscientização aos profissionais. “Ensinamos a ter cuidado pra manter o nosso maior patrimônio, que é a família. Já os aplicativos colocam metas que incentivam a alta velocidade, que incentivam o trabalhador correr mais”, ressaltou. Essas atividades são feitas por meio de visitas de fiscalização das condições de trabalho, palestras e outras capacitações. “A gente visita cada empresa e grupo de trabalhadores pra ver se as empresas estão fornecendo colete, capa de chuva e aparador de pipa. Pra saber se eles estão recebendo o que tá na convenção coletiva”. Carteira de Trabalho Reprodução Regras trabalhistas para motoboys: o que é lei? Para entender como a atividade de motoboy está regulamentada, o g1 conversou com a advogada especialista em direito trabalhista, Rayane Tavares. Neste tópico, ela responde os seguintes questionamentos. Qual a regra que regulamenta a profissão de motoboy? Quais os requisitos para se trabalhar como motoboy? Quais as atividades que um motoboy pode desempenhar? Existe alguma norma que regulamente o trabalho de motoboys que prestem serviço a aplicativos? Quais são os direitos de quem atua como motoboy com CNPJ ou MEI? Por que a Justiça tem reconhecido vínculo empregatício entre motoboys e aplicativos? 1- Qual a regra que regulamenta a profissão de motoboy? O motoboy que trabalha com carteira assinada, ou seja, em regime celetista, possui os mesmos direitos que qualquer trabalhador de outra categoria. Ou seja, todos, nessa condição, são regidos pela Confederação das Leis Trabalhistas (CLT). Pagamento de horas extras, adicional noturno e de periculosidade, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), repouso semanal remunerado, férias e décimo terceiro salário são alguns desses direitos, conforme listou Rayane. Em caso de demissão sem justa causa, também há direito a aviso prévio e seguro desemprego. Outro ponto a ficar atento é o fornecimento de equipamentos de proteção individual (EPIs), que garantem a saúde e segurança do trabalhador. Além disso, conforme a especialista, é importante que o profissional procure saber se há uma convenção coletiva (veja detalhes sobre o cenário da Região Megtropolitana de João Pessoa ao fim desta reportagem) que estipule outros benefícios, como piso salarial acima do salário mínimo. 2- uais os requisitos para exercer a função de motoboy? Para exercer a atividade de motoboy, sendo autônimo ou celetista, a advogada explica que é necessário atender aos seguintes requisitos: Ter, no mínimo, 21 anos de idade; Ter dois anos de habilitação na categoria; Trabalhar com colete de segurança; Ser aprovado em curso específico para motoboy. Outros critérios, previstos no Código de Trânsito Brasileiro (CTB), devem receber atenção por parte dos trabalhadores e empresas. 3- uais as atividades que um motoboy pode desempenhar? Dentre as funções que podem ser desempenhadas por motoboys, estão: Coletar encomendas; Distribuir encomendas; Entregar refeições para restaurantes; Entregar de medicamentos, revistas e jornais. 4- xiste alguma norma que regulamente o trabalho de motoboys que prestem serviço a aplicativos? De acordo com a advogada, não existe uma norma específica para o motoboy que trabalha com aplicativo. Por outro lado, a entrega por aplicativo não é considerada ilegal porque está dentro do hall de atividades que podem ser desempenhadas pelo motoboy. “O que se discute é até que ponto alguns aplicativos estão realizando contratações de forma autônoma, mas com vínculos em que existem requisitos que mostram que aquele trabalhador exerce um emprego e deveria ter sua carteira assinada e seus direitos garantidos”. A especialista reconhece, ainda, o trabalho o trabalho exercido por motoboys em aplicativos como importante para o funcionamento da sociedade. E reforça, mais uma vez, que o problema está na tentativa das empresas em burlar as leis trabalhistas. “A nossa crítica é nesse sentido. É um avanço que esse trabalho seja feito através de plataformas. O que precisa é que eles [motoboys] tenham os seus direitos garantidos”. 5- uais são os direitos de quem atua como motoboy com CNPJ ou MEI? O motoboy que presta serviços a partir do registro de CNPJ ou MEI e está em dia com as contribuições conta com direitos previdenciários, a exemplo de: Auxílio doença em caso de acidente ou necessidade de afastamento; Aposentaria por idade (com base no período que contribuir); Licença maternidade para grávidas. Profissionais autônomos não possuem esses direitos por causa da falta de contribuição. Portanto, não estão acobertados por eles. 6- or que a Justiça tem reconhecido vínculo empregatício entre motoboys e aplicativos? Como não existe uma regulamentação específica para motoboys que trabalhem através de aplicativos, decisões judiciais têm avaliado, na prática, cada relação entre empregado e contratante. Geralmente, essas análises levam em consideração os seguintes questionamentos: O trabalhador tinha que atuar de modo exclusivo ou poderia trabalhar para outras empresas? Só o trabalhador poderia prestar esse serviço ou ele poderia ser substituído? Havia pagamento de um salário/valor fixo? Havia uma carga horária a ser cumprida na jornada de trabalho? Em caso de falta, era necessário se justificar e não era permitido enviar outra pessoa pra exercer a função? Quem ditava as regras era a empresa ou o profissional tinha autonomia? Em caso de ações judiciais, conforme a especialista, esses fatores devem ser comprovados. O próprio aplicativo, por exemplo, pode fornecer provas documentais de como o trabalho acontecia. Convenção coletiva do Sindmotos-JP A convenção coletiva dos motoboys, motofretistas e mototaxistas vigente na Região Metropolitana de João Pessoa vale até julho deste ano e abrange os municípios de Bayeux, Cabedelo, Conde, Cruz do Espírito Santo, João Pessoa, Lucena e Santa Rita. O documento estipula entre os meses de junho e janeiro deste ano os seguintes pisos salariais para a jornada de trabalho de 44 horas semanais: Mensageiro Motociclista (motoboy): R$ 1.340,00; Motofretista (motoboy): R$ 1.340,00; Trabalhadores com motos em geral (motoboy): R$ 1.340,00. Sobre o valor do piso da categoria, há também o adicional de periculosidade, referente ao percentual de 30% para os profissionais. A convenção também estabelece outras regras sobre calendário de horas extras, intervalo, fardamento e fornecimento de EPIs. Vídeos mais assistidos do g1 Paraíba